O ano de 2014 assinala o arranque do projeto expositivo “SONAE / MNAC Art Cycles”, que constitui a primeira grande expressão pública do apoio mecenático da Sonae ao Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado (MNAC – MC). Na base desta iniciativa está a ideia de, dois em dois anos, convidar um artista nacional ou estrangeiro para desenvolver uma exposição individual de grande impacto no panorama artístico português. Nesta primeira edição, o convite foi dirigido ao artista visual Daniel Blaufuks.
Intimamente ligada ao projeto de doutoramento que tem desenvolvido na University of Wales, em Newport, a exposição que Daniel Blaufuks apresenta no MNAC – MC relaciona duas obras fundamentais de dois escritores de culto da literatura europeia e onde a ficção e a memória individual do Holocausto se confundem deliberadamente, por entre armadilhas, cruzamentos e citações que confundem o leitor na orientação narrativa e na exploração da memória nesse mesmo processo desencadeadas. Centrada em trabalhos de composição de imagens fotográficas de diversas proveniências (técnicas e temporais), esta mostra parte de W ou le souvenir d’enfance (1975), do francês Georges Perec, e Austerlitz (2001), o único romance do alemão W. G. Sebald, que já havia servido de inspiração a Blaufuks aquando do seu primeiro grande investimento e pesquisa sobre Terezín, pequena cidade fortificada, situada na atual República Checa e que recebeu o nome Theresienstadt durante a ocupação da Alemanha Nazi, na Segunda Guerra Mundial, tendo sido o único campo de concentração a ser visitado pela Cruz Vermelha Internacional, em 1944.
Partindo deste universo, a exposição intitulada Toda a memória do mundo, parte um, invade três diferentes espaços de comunicação e partilha expositiva do museu: uma sala de vídeo, com esse novo filme de mais de quatro horas sobre Terezín, uma biblioteca de consulta de obras relacionadas com o tema proposto – nas paredes desse espaço podem ver-se igualmente algumas fotografias de objetos – e, finalmente, uma ampla sala de exposição onde se apresenta um vasto núcleo de obras associadas a esta ideia e prática de um “atlas de imagens” sobre a memória – assumidamente inspirado na “iconologia do intervalo” de Aby Warburg – constituindo uma espécie de mapas visuais onde o artista procura, segundo as suas próprias palavras “seguir um percurso de formas diferenciadas de olhar, de variações sobre a mesma temática, colecionando e selecionando imagens de assuntos idênticos ou de palavras-chave similares e arranjando-as em formas visuais”.
Como uma sutura, e não como uma rotura, as imagens de Daniel Blaufuks procuram assim unir os espaços ou os intervalos da perceção, mesmo se no final mantemos um sentimento de indecisão, abertura e especulação sobre as mesmas. A sua fé nas imagens, apesar das dúvidas crescentes sobre o atual poder da fotografia nesse processo, continua a manter Blaufuks preso a um exercício imperativo, a um compromisso absoluto com o trabalho da sua produção e reflexão, apontando a memória que se espelha na imanência da fotografia como uma espécie particular de sombra que nos persegue a todo o tempo, em todos os movimentos dos corpos e da luz.
Nos antípodas de Peter Schlemihl – a famosa personagem de Chamisso que vendeu a sua sombra e se enredou depois na rejeição social e no isolamento – Blaufuks procura recuperar, obstinadamente, não tanto a sua própria sombra (embora também o faça em parte) mas aquela que o passado da humanidade nos deixou, sem contorno definido ou estabilizado, nas imagens fotográficas dispersas pela longa temporalidade moderna e a sua parada tecnológica. O resultado desse caleidoscópio, como podemos intuir na poética que funda o trabalho de Daniel Blaufuks, será sempre apenas, contudo, mais uma centelha que persistirá durante algum tempo na nossa memória, após a passagem dos corpos, das sombras e dos sentidos que fizeram um dia a vida parecer eterna.
David Santos
Diretor do MNAC