O cinema de Salomé Lamas assenta em mordazes golpes na realidade tal como a julgamos conhecer. As suas narrativas visuais elaboram-se através de um ecrã de simulações que corrompe todas as taxinomias entre racional e irracional, ciência e poesia, tradição e progresso, história e lenda, realidade e ficção e mais dualidades poderiam ser enumeradas ad infinitum.
A presente instalação vídeo da artista desfaz, uma vez mais, muitas dualidades, na sua maioria insondáveis, tanto na origem como no destino. A instalação Theatrum Orbis Terrarum, ou Teatro do Mundo, evoca aquele que é considerado o primeiro atlas moderno, atribuído ao cartógrafo e geógrafo flamengo Abraham Ortelius e impresso em 1570. As suas fontes foram diversas e muitas delas são desconhecidas ou estão desaparecidas, fundando, desde logo, o saber científico do mundo sob a premissa do acaso e da imponderabilidade.
O atlas que a artista realiza nesta obra é o da construção de memórias, consciente da sua ténue fiabilidade e do mítico encanto dos seus enunciados. Os lugares de outrora estão absortos na sua própria longevidade e, quando a imagem fantasma de mundos perdidos submersos se encontra com o mundo organizado e classificado dos despojos de civilizações antigas, sublinha-se a retórica ancestral do mar como a única possibilidade intemporal.
Nenhum fio narrativo, temporal ou espacial é possível neste diluir de fronteiras que é a memória da existência. A natureza assume assim o papel fundamental, afastando-se de toda a leitura cultural, que aqui surge mascarada de lengalenga abstracta na visita à arqueologia dos objectos sem vida a que a protagonista intemporal assiste com desleixo existencial.
De uma forma mais ampla, esta obra de Salomé Lamas esvazia todas as contingências entre tempo e espaço, enquanto ironiza com os grandes debates da modernidade sobre a natureza duradoura ou instantânea do tempo. Desenha-se um novo mapa que questiona a ciência da civilização, prometendo antes uma poesia primordial em mutação e incessante devir.Emília Tavares