Notas sobre Theatrum Orbis Terrarum, de Salomé Lamas
Mapas de areia, barcos virados pela água do mar
No século XVI, o Padrão Real pendia do tecto da Divisão dos Mapas da Casa da Índia. Era um mapa secreto, guardado da vista de espiões estrangeiros, que se fazia e refazia com as idas e voltas de cada expedição. Ajudados por objectos científicos para medir a distância, os navegadores imaginavam a representação do espaço percorrido. Em alto-mar, olhavam para cima e mediam o caminho pelas estrelas, enquanto a mão desenhava no espaço linhas fictícias que formavam territórios. No retorno à terra, tomavam como seu o mapa que antes tinha pertencido a outros, apagando traços divisórios e construindo novas fronteiras. Este mapa sob o qual se andava apagou-se com o tempo e aquilo que dele resta é uma cópia roubada, feita de memória por um dos cartógrafos para despistar os inimigos.
Mapas são linhas imaginárias projectadas no espaço, representações visuais de um território percorrido. Criam espaços a navegar, utopias e distopias, ficções que a memória projecta e desfaz. Como as bandeirolas coloridas que soletram o título da instalação, desenhando homógrafos no ar, os mapas constroem mensagens codificadas que são depois expostas à entropia dos elementos. Os espaços projectados em Theatrum Orbis Terrarum funcionam como um mapa de memória que traça o seu próprio território, feito e refeito nas fronteiras exíguas entre os três ecrãs.
A linha da água serve, inicialmente, como arraia entre o que existe por baixo e por cima do nível do mar. Mas quando as ruínas de uma aldeia submersa entram em contacto e em rota de colisão com as rochas em exposição no museu, as imagens começam a questionar o tempo cronológico que separa as diferentes superfícies, e aquilo que antes estava enterrado, no espaço e no tempo, assombra os que estão à tona. Inseridos num espaço contíguo, são sobrepostos objectos que vão de um tempo ao outro. Transferem-se nos intervalos entre os ecrãs, quebrando as linhas projectadas que os dividem. O tempo histórico ao qual pertenciam torna-se uma substância tão efémera e maleável como aquela que compõe as nuvens esfumadas dos fantasmas que são chamados às imagens. À cronologia, Theatrum Orbis Terrarum opõe a estratigrafia. Propõe que se pense um tempo geológico, anacrónico, que se expande e contrai, uma paisagem onde a linearidade da progressão se desfaz entre camadas porosas. Estas são rochas que se diluem em água, e onde ficam perdidas as palavras daqueles que tentam ordenar e catalogar a História.
“Quando olho o mar ... perco interesse no que se passa em terra”, diz a personagem que visita o museu, tornada xamã. No atlas que a instalação desenha, cria-se uma ilha, um pedaço de terra em alto-mar. Chega-se lá de barco, seguindo mapas que levam a toda a parte e, de toda a parte, a sítios que não existem ainda. Objecto ao qual se dá um nome próprio mas nunca um lugar fixo, o barco vive entre estar contido em si mesmo e o espaço que percorre entre cada porto. Em civilizações sem barcos, “os sonhos secam, as aventuras dão lugar à espionagem, e os piratas são substituídos pela polícia” (Michel Foucault. “Of Other Spaces: Utopias and Heterotopias”, in Rethinking Architecture: A Reader in Cultural Theory, edited by Neil Leach (London: Routledge, 1997), p. 336). Theatrum Orbis Terrarum cria um território onde se imagina uma outra geografia, do acaso e da contingência, de marinheiros em terra e de terras à deriva.
Joana Pimenta