A obra de William Kentridge (Joanesburgo, 1955), uma das mais significantes da actualidade, oferece uma visão distintiva da história complexa da África do Sul e do legado do apartheid e, mais amplamente, sobre a natureza das emoções humanas e da memória. A exposição que o museu apresenta, no âmbito da edição de 2005 do Festival Europeu Temps d’Image em Lisboa, permite vislumbrar a magnitude de uma obra através de três dos seus mais recentes trabalhos: Sete Fragmentos para Georges Méliès, Viagem à Lua e O Dia pela Noite, todos eles de 2003.
Em Sete Fragmentos para Georges Méliès a fonte de inspiração de William Kentridge é o trabaçho de Georges Méliès, nascido em Paris, em 1861, filho de um rico fabricante de sapatos. Depois de terminar os estudos de belas artes Méliès compra o teatro de Robert Houdin e começa a apresentar filmes, antes dele próprio começar a fazer e produzir os seus filmes.
Sobre Viagem à Lua William Kentridge escreve: “Um foguetão em forma de bala despenha-se na superfície da Lua, um charuto apagado numa face redonda. Quando vi o filme de Méliès pela primeira vez no princípio deste projecto, percebi que conheci esta imagem anos antes de ouvir falar de Méliès. Estava bastante avançado na realização dos fragmentos para Méliès. Tinha resistido a qualquer pressão narrativa, construindo a premissa da série – o que é que acontece quando o artista vagueia pelo estúdio. O que aconteceu foi a necessidade de fazer pelo menos um filme que se rendesse ao impulso narrativo.
O Dia pela Noite tem origem no exercício de filmar formigas no atelier do artista, enquanto trabalhava nos filmes de Méliès: “Nesta fase estava a trabalhar no filme Viagem à Lua, a penúltima e mais complicada das peças de Méliès, quando me ocorreu que podia fazer o negativo da imagem, e usar as formigas para algumas das sequências nocturnas da viagem.”
“Tal como os títulos o referem é aos primórdios do cinema, tempo de construção e descoberta fascinante de uma nova linguagem, de que Georges Méliès foi um pioneiro, que William Kentridge recorre para repensar o desenho e o implicar no movimento. As cenas que estas nove videoprojecções apresentam decorrem no atelier do artista, lugar da prática do desenho e de reorganização contínua do mundo. Os desenhos esboçados, apagados e redesenhados num palimpsesto em movimento são por isso construídos não só pelos gestos do corpo do artista mas também pela montagem fílmica que lhes retira qualquer possível estabilidade ou mesmo finalidade para devolver a inquietude que habita os passos do artista e o funde com o desenho de onde também emerge. No cruzamento do desenho com o cinema pode aquele ser reconduzido a um estado de contínuo nascimento. Este é um dos muitos aspectos que estes trabalhos de William Kentridge nos revelam e que o ensaio de Ruth Rosengarten analisa com profundas implicações, quer no reequacionamento do sentido do médium, quer no plano fenomenológico que pensa o inaparente.”
Pedro Lapa, curador da exposição