LISTA DE ARTISTAS
Ana Bezelga, Ana Pérez-Quiroga, Ana Pérez-Quiroga e Patrícia Guerreiro, Ana Pissarra, Carla Cruz, Catarina Saraiva, Célia Domingues, Cristina Regadas, Elisabetta di Sopra, Hong Yane Wang, Itziar Okariz, Joana Bastos, Lilibeth Cuenca Rasmussen, Maimuna Adam, Mare Tralla, Maria Kheirkhah, Maria Lusitano, Mónica de Miranda, Nilbar Güres, Nisrine Boukhari, Oreet Ashery, Patrícia Guerreiro, paula roush & Maria Lusitano, Pushpamala N, Rachel Korman, Razan Akramaw, Rita GT, Roberta Lima, Sükran Moral, Susana Mendes Silva, Tejal Shah, Zanele Muholi.
hetero q.b.
Esta programação apresenta um conjunto internacional de obras em vídeo realizadas por mulheres, sobre temáticas que vão desde o feminismo, ao lesbianismo e transgénero. A seleção de trabalhos abrange países e realidades consideradas “periféricas”, em relação ao discurso e prática do feminismo clássico euroamericano, usualmente mais conotado como progressista na defesa da igualdade das mulheres e do género. Sociedades em que as tensões históricas, culturais, sociais, políticas e naturais sobre o género têm sido, nas últimas décadas, disputadas e reivindicadas sob outros moldes, desafiantes da própria história do movimento feminista.
Por outro lado, esta programação revela alguns dos debates mais importantes sobre as questões dos feminismos ou pós-feminismo, assim como todo o âmbito das diversidades queer, desde o lesbianismo, bissexualidade, transsexualidade ou transgénero, que têm sido fundamentais para o esclarecimento e a constituição de uma nova cultura e mentalidade sobre estas realidades.
Um desses debates tem sido o protagonizado por Judith Butler, cuja teorização histórica sobre estas questões veio, recentemente, advogar uma aproximação dos movimentos feministas e transgénero na partilha de uma série de valores, contrariando um latente conflito entres as muitas facções da identidade sexual, a favor duma sociedade que reconfigure as distinções entre vida interior e exterior, evitando as abordagens patológicas da identificação de género cruzada. Para Butler, os termos de designação do género são uma categoria histórica e estão continuamente em processo de remodelação, o que deixa em aberto outras possibilidades para o seu entendimento, já que o “sexo” e a “anatomia” também não escapam às regulações e normativas culturais. O “masculino” e o “feminino” estão permanentemente sujeitos à mudança, cada um desses termos tem histórias sociais que mudam radicalmente segundo as fronteiras geopolíticas e as obrigações culturais.
Outro debate, tem oposto a hegemonia do discurso feminista euroamericano em países e culturas negras, índias, chinesas ou árabes, denunciado as dicotomias inerentes ao discurso feminista “branco” como forma de perpetuar as relações estruturais de poder do sistema capitalista e de identificar uma abordagem ocidental de superioridade sobre o “outro”.
Este é um âmbito de renovação dos discursos feministas que vem permitir novas formas de militância e teorização. Estudos e trabalhos concretos sobre o feminismo negro ou no Islão têm sido precursores de uma nova abordagem heterogénea e descentralizadora do discurso clássico feminista, aproximando-se em muitos dos seus aspectos da realidade dos países do sul da Europa, ao fazer confluir o debate e a prática para zonas de acção que englobam vertentes como o íntimo e o biográfico a cultura popular ou os costumes, em detrimento dum discurso filosófico e teorizante.
Este programa não pretende estabelecer nenhum discurso panfletário sobre as questões de género, mas considera que o enquadramento da heterossexualidade na sociedade contemporânea tem um papel normalizador e regulador duma autoridade patriarcal, permitindo grandes margens de desigualdade no seu exercício. Disso mesmo é exemplo a múltipla abordagem artística que em díspares meios sociais tem sido efectuada nas últimas décadas, utilizando diferentes linguagens para confrontar, denunciar, divulgar ou apenas divagar sobre a complexidade do género e da sua vivência.
A teoria do género tem sido debatida e questionada em vários meios mais científicos e intelectualizados, mas a realidade é que também se instalou no debate público entre interrogação e condenação sobre os novos modelos de vivência da sexualidade, e o seu consequente enquadramento legal e político.
O tema constitui ainda um tabu de contornos pouco esclarecidos em diferentes sociedades e por diferentes razões, mas um recente dossier sobre o tema, publicado pela revista Le Magazine Littéraire colocava uma pertinente questão “ devemos ter medo do género ou pelo contrário aproveitar a destabilização que o mesmo coloca às nossas normas de pensamento para transformar/melhorar a nossa sociedade.” O género é também uma doutrina em formação, cujos contornos de debate e investigação têm tido nos últimos anos uma exponenciação relevante, bem como têm interferido de forma fracturante na organização moral, ética e social das sociedades contemporâneas, o que por si só justifica a atenção que o tema nos merece.
Emília Tavares
Curadora
Dear Emília
Estou ainda sob o efeito do ‘panótico’ depois de visitarmos a exposição do Museu do Hospital Miguel Bombarda. A área dedicada a Valentim de Barros, o bailarino e artista que viveu mais de 40 anos no Pavilhão de Segurança impressionou-me tanto como me inspirou, em doses semelhantes, pelo reconhecimento da dor e da arte associados a uma vida regulamentada pelo hospital-prisão. Em exposição estavam duas fotografias a preto e branco de Valentim, performando para a câmara duas cenas que de algum modo caracterizam o que teria sido o seu dia-a-dia na cela, um espaço ínfimo de alguns metros quadrados que nós também tivemos oportunidade de visitar.
Numa dessas fotos ele está à porta da sua cela, o olhar voltado para nós acolhendo-nos como o anfitrião num ambíguo convite a trespassar a fronteira da domesticidade, simulada na utopia de um dia a dia caseiro sabido impossível, delimitado que estava pelas normas institucionais do cárcere. Os nossos olhares encontram-se nessa interrogação sobre o que poderá ser o quotidiano de um artista vivendo sob vigilância normativa do panótico arquitectónico. Noutra foto, o olhar evita-nos pois está concentrado na tarefa do bordado, uma das suas actividades artísticas diárias, a par da confecção de bonecas de pano/trapo e da pintura. Nesse momento de criatividade, o olhar deixa de nos confrontar e convida-nos a concentrarmo-nos naquele que foi o foco do seu trabalho diário.
Numa das suas três telas patentes nessa exposição, existe uma cena exemplar do seu estilo de pop-fantástico: uma paisagem de cores sorvete, numa estrada pontuada por tons brancos e rosa de arvores em flor e um castelo digno de disneylandia, na qual duas figuras em trajes femininos, em camisolas de gola alta, mini saias coloridas e meias brancas pelos joelhos estão entrelaçadas num abraço que as coloca de frente para o nosso olhar, mas os rostos, colados um ao outro, são indefinidos, uncanny, nem reconhecidamente raparigas nem rapazes, nem crianças nem adultas, a pose dos lábios em sorriso contrariada pelo vazio dos olhos negros, sugerindo corpos em estado de devir, de uma transgressão de potencial queer e queerizante.
Intitulámos este projecto hetero q.b. baseadas na premissa de que as sexualidades são um componente essencial do trabalho artístico e das relações de poder que se estabelecem entre as/os artistas e as instituições. As artes em Portugal são um espaço em permutação, negociável e flexível… até certo ponto, para além do qual se torna mais difícil senão impossível permeá-lo com projectos que desafiem, que vão para além das regras da hetero-normatividade. Excepcões podem às vezes infiltrar o mundo da arte mas a hetero-normatividade continua a ser assumida como a regra dominante. Heterosexualidade é assumida como o filtro normalizante - daí o título: hetero quanto baste (q.b.). Mas também a tua contraproposta sugerida no teu texto: hetero (geneidade) q.b., tanto no museu como na vida.
Ainda que possa parecer estranho dedicar um projecto com a palavra hetero (q.b.) no título e que reúne vídeos feitos por mulheres, e um artista gay como o Valentim de Barros, serve este tributo para enfatizar a perspectiva queer nas representacões dos géneros e das sexualidades que ensaiámos neste projecto.
A metodologia de trabalho que adoptámos, caracterizada por misturas interdisciplinares para reposicionar o enlace da produção artística com a questão do género e da sexualidade, é semelhante à defendida por Lisa L. Moore no livro Sister arts: the erotics of lesbian landscapes (2011). Nele, a autora parte de um poema do filósofo naturalista Erasmus Darwin para demonstrar que as artes paisagistas lésbicas, cultivadas por Mary Delany, artista e inventora da colagem botânica e Margaret Bentinck , coleccionadora e patrona da ciência e das artes, eram celebradas pela comunidade artística que à sua volta se reuniam na Inglaterra do século XVIII.
Contudo, o seu uso da linguagem da flor e do jardim para exprimir intimidade e amor entre mulheres não está visível na história da arte e é só através de uma metodologia mais transversal, queer, que combine gossip (coscuvilhice), rumores, segredos, intuições, paixões, amizades com pesquisas de arquivos e o uso de objectos culturais e estéticos, que se torna possível aceder a uma historiografia que se encontra ainda por fazer. Foi esta abordagem que pusemos em prática no nosso programa, usando uma combinação de teoria crítica, narrativa biográfica, pesquisa de arquivo com conversas de café e partilha de segredos para mapear um território que ainda não está marcado. Poderíamos ter agregado uma proposta mais canónica, cingindo-nos a uma orientação feminista mais convencional, mas a metodologia queer que adoptámos partilha a dos artistas cujos trabalhos seleccionámos.
Os trabalhos de vídeo no programa para além de adoptarem também estas metodologias queer na sua conceptualização, têm um outro ponto em comum: não rejeitam o envolvimento com a masculinidade heteronormativa da sociedade patriarcal, que tem sido questionada por teorias e práticas feministas. Antes evidenciam uma exploração criativa dos mitos e fantasias acerca da masculinidade, demonstrando a necessidade de um jogo lúdico, físico e às vezes monstruoso com a masculinidade normativa e o machismo para um reconhecimento das masculinidades femininas queer.
No estudo Female masculinity (1998) Judith Halberstam defende que esta “masculinidade feminina”, masculinidade sem homens representada, por exemplo, nas mulheres masculinas ou nas raparigas arrapazadas (as denominadas “maria-rapaz”), longe de ser apenas imitação do masculino, oferece-nos uma antevisão de como a masculinidade normativa é construída enquanto tal “as feminilidades masculinas são enquadradas como o lixo rejeitado da masculinidade dominante de modo a que esta ordem masculina possa surgir como a única realidade. Mas o que nós entendemos como masculinidade heróica foi produzido por e através de ambos os corpos masculino e feminino.”
O que são as masculinidades hetero ou alternativas neste programa? De que modo aparecem os géneros, os feminismos e o poder entrelaçados no trabalho artístico? Qual o impacto do trabalho artístico ser considerado heterossexual, homossexual ou de qualquer outro modo sexual? Trata-se de delinear estratégias de (des)normalização utilizadas por artistas nos seus trabalho, perspectivas experimentais queer que desafiam as categorias estabelecidas de género e etnia/raça.
Neste espírito, o legado de Valentim de Barros no seu caso extremo de “outsider artist” condenado ao meio psiquiátrico (desde a Ditadura à Democracia) mais por ser considerado uma aberração de género do que por uma questão evidente de distúrbio mental, cria um contexto de recepção para uma arte queer invisível em Portugal, emergindo do entrelaçar de obsoletas e discriminatórias práticas institucionais com libertadores abraços internacionais.
paula roush
Curadora
Ficha técnica da exposição
Comissariado: Emília Tavares & paula roush
Texto: Emília Tavares & paula roush
Edição e design: Barbara Says…
Apoio técnico e montagem: António Rasteiro
Mecenato: Rita Sá Marques
Comunicação: Rita Sá Marques
Tradução: Kennistranslation