Erwin Wurm (Áustria, 1954) é sobretudo conhecido pelas esculturas que tem vindo a desenvolver, sempre em paralelo com outros trabalhos, ao longo de quase uma década (desde 1997). As One Minute Sculptures , muitas vezes referidas genericamente como a estratégia de criação do seu trabalho, são uma espécie de performances, fotografadas e filmadas, em que o artista se submete, e aos seus modelos, a bizarras relações com objectos comummente utilizados no quotidiano, e representam tentativas de criar escultura com meios aparentemente tão parcos como o corpo e os objectos que o rodeiam: Wurm é o primeiro a admitir um fascínio pelo que designa de "caminho mais curto", pela procura de formas de expressão claras e rápidas. Para cortar caminho, o artista utilizou uma espécie de lógica niveladora: a da absoluta proximidade, que o levava a utilizar o que estava sempre à mão. Segundo as suas próprias palavras, em entrevista recente à Art Press , quis "perceber se e como era possível converter e transformar em escultura coisas que têm a ver com jogos, comida, desejo, higiene corporal".
As One Minute Sculptures constituem, ao mesmo tempo, uma destabilização ontológica do conceito de escultura e um comentário descomplexado à herança minimalista e conceptual, que o artista absorveu criticamente num contexto académico de finais dos anos setenta que rejeitava liminarmente um conteúdo escultórico no sentido tradicional do termo (todas as declinações da escultura clássica). Explico melhor: estas esculturas não são as frases instrutórias ou os desenhos impessoais (os Instruction Drawings , que como alguém já referiu, fazem lembrar os desenhos dos manuais de escuteiros) que enumeram os objectos envolvidos, como também se não encontram nas fotografias e nos vídeos que registam as performances .
Estas esculturas não estão em lado nenhum, porque estão em todo o lado ao mesmo tempo. Digamos que Wurm desmente com esta polimorfia a existência de um instante mais importante do que outro, pelo que a fotografia, concretamente, não lhe serve para sublinhar um momento irrepetível, nunca mais realizável, mas para inaugurar - potencialmente, pelo menos - uma infinidade de reproduções. O artista define uma moldura aparentemente rígida, assente num protocolo instrutório, que se percebe adiante admitir variáveis - quase todas as esculturas implicam o falhanço - e ser apenas um catalisador de inúmeras possibilidades. E como é que a congelada fotografia pode potenciar esta variedade?
Ao contrário da herança conceptual, que o artista obviamente comenta, a fotografia não serve aqui de pura documentação - apesar de também participar, é indesmentível, como registo. Mas estamos muito longe de uma espécie de pureza moral que via nas instruções e na documentação fotográfica uma forma de idealizar o objecto artístico - ao ponto dele não precisar existir, ou ser de facto executado. Em Wurm as instruções, os desenhos, os registos, nunca servem um furto à execução. Pelo contrário: devem incitar à execução ininterrupta, ao ponto de já alguém ter apelidado as suas One Minute Sculptures de "esculturas que nunca param". Ao artista interessa a possibilidade de reformular, re-executar, sendo o falhanço encarado como um elemento que enriquece o trabalho.
Um outro ponto de divergência em relação à documentação tal como era encarada nos anos setenta, é que as fotografias patrocinam aqui uma espécie de farsa da estética do instantâneo. As suas imagens têm quase sempre uma composição muito cuidada, ou milimetricamente desleixada: será por acaso, para me referir apenas a um exemplo, que nas suas fotografias o chão ganha um imenso protagonismo? A verdade é que, ao apontar para o chão, Wurm sublinha de forma rigorosa o trabalho da gravidade, que é afinal uma espécie de cenário ubíquo para a nossa experiência do mundo, qualquer uma. Por outro lado, as fotografias de Wurm não se podem desligar da sua produção videográfica, no que ambos, em constante articulação, contribuem para o acentuar da referida caricatura do instantâneo. Não só cada imagem se subentende como uma escolha entre uma multitude de possibilidades (todas as que cabem num minuto) - nunca existindo, nesse sentido, uma versão definitiva -, como o artista utiliza o vídeo para anedotizar a própria fotografia, no que ela implicaria de ênfase do momento único: em 59 Positions , ou em Still , Wurm filma várias pessoas a tentar manter posições desconfortáveis, como se de snap-shots se tratasse, estreitando a linha que separaria fixação e movimento.
Existe um claro ponto de contacto com a herança conceptual, que é obviamente a preocupação com a excessiva fetichização da obra de arte - sem precisar de esgrimir o discurso estafado da desmaterialização da obra de arte. O artista concentra-se essencialmente na forma como o seu trabalho circula e é coleccionado, estreitando a relação entre comprador e utilizador: assina e reenvia, por um preço quase simbólico, fotografias de quem tenha decidido seguir as suas instruções e se tenha registado nessa tentativa. Na exposição do Museu do Chiado, integrada na LisboaPhoto, Wurm permite que sejamos fotografados nestas performances por um dos vigilantes da mostra.
Além das One Minute Sculptures , o artista apresenta em Lisboa uma série de fotografias correspondentes a trabalhos executados em diversas cidades, e com modelos autóctones (em alguns casos estudantes de arte): as Outdoor Sculptures . Aqui vemos voluntários que ostentam o tipo de próteses nada gloriosas comum no trabalho de Wurm: baldes, talheres, melancias, canetas, louça. Estas imagens, mais uma vez de um cuidado aspecto amador, conseguem, graças à tremenda variedade de materiais com que os corpos interagem (da comida ao material de escritório e de limpeza) - e sempre nos cenários mais improváveis para a exibição do ridículo e da falha, que são a rua movimentada e o mercado -, combinar estranhamente o máximo rigor (da ordem do inventário) e o esplendoroso espalhafato (o despudor infantil). Como são eminentemente infantis as acções registadas noutro conjunto de imagens seleccionadas para a mostra do Chiado, como baixar as calças, levantar as saias, inspeccionar decotes e braguilhas, cuspir na sopa. Algumas daquelas inspecções parecem comentar o clima de desconfiança histérica relacionado com os ataques terroristas e intitulam-se looking for a bomb .
Em Hotel Rooms , outra série de imagens expostas na LisboaPhoto, e continuando a explorar a tremenda variedade de formas em que uma escultura pode ser feita, o artista dispensa a sua presença, ou a de outros voluntários, e limita-se a registar as alterações que executa em quartos de hotel onde se aloja. Distinguem-se de todas as outras fotografias, visto não sugerirem estranhos exercícios de yoga com aparelhos improvisados, mas conseguem não só articular-se com o restante trabalho, como acentuar, às vezes retrospectivamente, algumas das suas características fundamentais: estas imagens ostentam um carácter absolutamente periclitante (os móveis empilhados querem cair) e provisório (outra ordem se seguirá, e, no final, a arrumação completa), correspondendo a uma das inúmeras soluções de disposição dos móveis naquelas divisões. Precariedade e falhanço são assim, como em todas as suas obras, um verdadeiro motor interno - um elemento que, mais do que admitido, é convocado e acarinhado.
Ricardo Nicolau
A exposição no Museu do Chiado - MNAC inclui aproximadamente 80 trabalhos: esculturas performativas, fotografias (das séries Instructions for Political Incorrectness , Cahors , Taipei , One Minute Sculptures and Hotelrooms ), desenhos (da série One Minute Sculptures ) e uma instalação interactiva - quatro pedestais com cadeiras que os visitantes podem utilizar seguindo instruções estabelecidas pelo artista, dando origem a situações que podem ser fotografadas.
A LisboaPhoto 2005 é uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa. Esta exposição é uma co-produção entre a CML e o Instituto Português de Museus.