Baseada no filme de 2005 Natureza Morta – Visages d’une Dictature, a instalação Natureza Morta/Stilleben evoca um tema fundamental na história das artes visuais. A expressão alemã stilleben tem origem na palavra neerlandesa stilleven que significa vida ou existência imóvel e que, nas línguas latinas, corresponde ao paradoxal conceito de natureza-morta. A obra de Susana de Sousa Dias explora, precisamente, a fronteira ambígua entre essas duas realidades antagónicas, pondo em evidência o instante que separa a vida e a morte, a imobilidade e o movimento.
O trabalho resultou de uma extensa investigação sobre os documentos visuais dos 48 anos de ditadura em Portugal, reunindo fotografias de prisioneiros políticos, reportagens de guerra e documentários de propaganda, numa montagem que recupera rushes excluídos das versões finais exibidas na época. Conjugando a fotografia e o filme, a autora reduz a velocidade dos registos originais para aproximar a sequência cinematográfica da imagem parada. Ao suprimir o som dos filmes originais e recusar qualquer forma de narração ou legenda, Susana de Sousa Dias desconstrói e subverte as narrativas oficiais, revelando a contradição e a estranheza por detrás da produção iconográfica do regime.
Tal como as fotografias dos prisioneiros políticos, a peça desdobra-se em três imagens projectadas, formando um tríptico cuja espacialidade se completa com a instalação sonora de António de Sousa Dias. Não menos perturbadora que as imagens, a música surge aqui como possível fio condutor que potencia a reordenação de uma realidade fragmentada e a construção de outras narrativas pelo próprio observador. Natureza Morta propõe, assim, uma mudança de escala e de perspectiva, que desvia o observador da encenação de uma memória colectiva, para o centrar no território íntimo da individualidade, desfocando os gestos teatrais do poder para observar atenta e prolongadamente os gestos anónimos da sobrevivência quotidiana. Suspenso na lentidão das imagens e nas interpelações musicais, entre o terror e a empatia, o observador assiste a um desfile fantasmagórico de mortos-vivos e vivos-mortos, através de uma nação expectante, condicionada pela repressão e paralisada pelo medo, que nem mesmo a revolução, no final do filme, parece conseguir resgatar plenamente.
Representativa do percurso autoral de Susana de Sousa Dias em torno das memórias do Estado Novo, Natureza Morta/Stilleben é, seguramente, uma das suas obras mais poéticas e também mais inquietantes.
Helena Barranha