Como escapar ao escrutínio da história e da ética criativa, à avaliação humana, ao juízo de valor alheio, e, tão mais importante, à nossa própria purga sem qualquer auto-defesa, se o que fazemos é música? Se o que fazemos é música, teremos que ter razões, do racional ao irracional, do real àquilo que não tem nome. Por uma questão ecológica, não será simplesmente evitável que se faça música sem procurar ter estas coisas em conta?
Chegamos ao fim de uma década que de certa forma, do ponto de vista das possibilidades tecnológicas, apenas foi constituída por mais dez anos de maneiras, estratégias de marketing mais ou menos conscientes, de continuar a alastrar as doenças criativas das últimas décadas do século XX (de sempre?). Novas maneiras de se escamotear a generalizada ausência de ideias, a total ausência de propósitos e um global vazio de intenções minimamente pertinentes, que desembocou em tanta música decorativa. Na verdade, porquê fazer música se não somos como os Blues Control? Porquê ouvir música se não ouvimos gente como os Blues Control? A sua arte tem paralelos ainda mais antigos (eternamente mais antigos) que qualquer esquema de matilha, pois baseia-se numa total procura de todas as coisas, tanto quanto a música e a experiência de cada um o permite. A sua música é um trânsito entre espaços no tempo, da mesma forma que a vida de cada um de nós terá que o ser para que comece a fazer algum sentido verdadeiramente profundo, em que deixamos de ser vítimas de tudo, e nos tornamos alguém. Existe para lá do estilo (o seu género são todos os dias que já viveram), constrói-se numa busca pelo abstracto onde nos tentamos encontrar consecutivamente a nós próprios de uma outra maneira, num outro sítio, maiores, com algo mais para contar ao resto do mundo, com algo mais para sentir. Não decalca da história, pois aprendeu a desmontá-la até aos seus confins, buscando inspiração de gesto e sentido em toda aquela com que tomou contacto. Parece habitar um local da sua própria construção - uma zona por onde há fogo, lava, nuvens, céu e escuridão infinita (o sítio onde mora o futuro e o passado para o qual não temos palavras). Russ Waterhouse (guitarra), Lea Cho (teclados) e as suas drum machines, sediados em Nova Iorque, têm vindo a produzir esta maravilhosa música líquida há já alguns anos. Primeiro como Watersports, e nos últimos tempos enquanto Blues Control. A sua discografia, nunca menos que pertinente e desesperadamente real, vê agora a edição do que será o seu ponto alto editorial, com o lançamento de 'Local Flavor', pela norte-americana Siltbreeze, que continua constantemente a lançar pérolas. Esta sua data no Museu do Chiado, com os portugueses Tropa Macaca, será a penúltima da primeira digressão europeia destas bandas, e um momento precioso na história da música desta década para presenciar dois dos seus mais interessantes cérebros. Para quem se interesse por música e viva neste país, não é menos que vagamente criminoso perder uma cerimónia desta magnitude.
Tropa Macaca
As questões do impacto tecnológico sobre a música, no que concerne aos meios disponíveis para a criação artística, e teorizações subsequentes dessas perguntas têm até hoje explicado, quando o têm feito, os aspectos mais lineares da influência que os novos instrumentos técnicos têm tido sobre as possibilidades do som. Contudo, para lá das utilizações mais óbvias de opções apenas recentemente disponíveis, existe um outro tipo de vantagens, que dão forma contemporânea a uma maneira actual de ser e actuar. A música dos Tropa Macaca existe, como tantos trabalhos importantes, enquanto organismo vivo e exposto na sua totalidade. Esta permeabilidade, crucial para o funcionamento dos sentidos, das ideias, das emoções e das inominabilidades, é utilizado na sua música como um instrumento bélico. A construção sonora do novo som dos Tropa Macaca uma potentíssima blindagem que permite a afirmação de todas as coisas, o escape e a destruição daquelas que interessa deixar para trás. Duo de André Abel (guitarra) e Joana da Conceição (electrónica, teclados), encaram o desenho do seu caminho como um processo circular de desbravamento. A repetição construtiva deste movimento altera-o cada vez que que é reiniciado, e é nesse processo de constante desconstrução que assenta a sua mecânica estética, ética e metafísica. Um processo grotesco de descoberta através da erosão e do atrito, realizado nos mais variados ritmos e passos, mas com uma qualidade de urgência presente em cada momento. O que procuram é antigo e o mesmo de todos os alguma vez foram grandes, a mecânica transversal no tempo, os métodos actuais. Uma banda indivisível que funciona como prática una de duas pessoas, um pacto para a vida e todos os acontecimentos que ao longo dela aparecerem. Os Tropa Macaca apresentam-se no Museu do Chiado no final da sua primeira digressão europeia, na altura em que lançam 'Sensação de Princípio', seu primeiro álbum para fundamental editora norte-americana Siltbreeze, capítulo mais recente do seu trajecto e a sua terceira obra-prima consecutiva, sucedendo a 'Marfim' (Ruby Red, 2007) e 'Fiteiras Suadas' (Qbico, 2008).