Sem título, 2005, de Júlia Ventura desloca aparentemente para o vídeo um conjunto de preocupações identificáveis com o trabalho sobre fotografia que a artista desenvolve há duas décadas. Mas nada mais enganoso do que entendê-lo desse modo. De resto, o vídeo é um medium quase inusual no conjunto do seu trabalho.
Júlia Ventura desenvolveu desde finais da década de 70 um trabalho exclusivamente voltado para a auto-representação e a desmistificação do seu entendimento humanista, realizada através de uma subtil e acutilante reflexão sobre as condições da representação, sejam elas relativas aos procedimentos semióticos ou aos estereótipos sociais, culturais e imagéticos. O seu trabalho fotográfico, pictórico ou em papel de parede pode contar ou ironizar as construções da identidade, através de múltiplas articulações de um inventário das configurações do próprio rosto, de impressões digitais sobre tela, de carimbos com o seu perfil esboçando uma careta acrobática cuja língua quase toca a ponta do nariz ou de padrões decorativos em papel de parede.
O rosto ou o dedo são assim continuamente indexados e por isso tangíveis às mais diversas superfícies de inscrição que determinam, no quadro de um contexto tecnológico de produção da imagem, as possibilidades perceptivas das identificações em curso. Os usos destes media não são irrelevantes para tal. Contrariamente ao entendimento tradicional desta tangibilidade não é o referente (o rosto, a impressão digital) que se limita a imprimir algo de si, mas a produção dessa impressão que o configura.
Júlia Ventura também associou estes aspectos a outros provenientes de um imaginário obsoleto e estereotipado, como seja o luar enquanto substância luminosa da realização fotográfica e simultaneamente estereótipo simbólico da polaridade feminina que impressiona o seu corpo. As Full Moon Photos (1994-2003) apresentaram-na em algumas poses já recorrentes mas transfigurada pelas condições impostas. Nestas fotografias uma tensão provocada pelos movimentos do rosto e a exposição lenta da película provoca o aspecto fantasmagórico da imagem, por vezes quase pictorialista. Mas não se trata de nenhum revivalismo, se não de inscrever ou imprimir o movimento num medium aparentemente destinado a suprimi-lo no instante. E o instante dissolve-se na sua impossibilidade, nessa infinita fronteira entre passado e futuro, devolvendo à fotografia a sua espectralidade.
Em Sem título, 2005, é também o luar que serve de substância luminosa aos rostos pictóricos que emergem do fundo preto com uma aparência seiscentista e diferenciados entre o místico, a neutralidade ou o esgar. Mas as três imagens constitutivas deste trabalho estão objectivamente no tempo, ainda que as três poses do rosto se apresentem tão estáticas quanto a sua performance o permite. A passagem da sua iconografia fotográfica mais recorrente ao vídeo transfere agora, através da tentativa da ausência de movimento, uma ambiguidade para o próprio medium. O vídeo aproxima-se infinitamente da fotografia. Ainda assim o tempo escoa e uma tensão insinua-se mas não existe qualquer progressão ou narrativa.
Se nos retratos fílmicos de Andy Warhol as figuras estão diante da câmara com os seus gestos mínimos e descontraídos, aqui em Sem título, 2005 elas procuram subtrair-se a essa condição vivencial por uma postura que tem como anterioridade uma imagem estática. É na aproximação a essa imagem sem tempo, fotográfica e remetida para o isto foi que vacilam e continuamente se revelam num presente que implica a continuada constituição da imagem que as informa. Flúem por isso de um tempo para outro esvaziando a ficção de um presente absoluto que caracteriza as convenções mais tradicionais do medium, o isto está a acontecer. Pode assim a imagem tornar visível o ser bruto da substância temporal que a constitui, ou seja a espectralidade do seu presente.
Pedro Lapa