Esta apresentação da colecção do museu reúne dois períodos afastados por um século e que poucas relações estéticas têm entre si. De comum, pode dizer-se que correspondem a dois momentos de transformação profunda das práticas artísticas nacionais. Nos meados do século XIX, a introdução tardia do Romantismo reconfigurou um novo entendimento da obra de arte e introduziu os primeiros traços da condição moderna, cujo advento, no plano político, envolvera o país em grandes conflitos entre o conservadorismo e o liberalismo.
A década de 60, no século XX, sob a ditadura anti-moderna e a censura, constituiu-se como um período de transformações radicais do entendimento do objecto artístico. Os artistas sincronizaram as suas interrogações com as que se registaram no contexto europeu e, por vezes, aí participaram com as suas propostas, como aconteceu com o grupo KWY. Todavia esta realidade, em termos sócio-económicos, não foi uma experiência efectiva e as novas linguagens dos mass media, que tanto fascinaram a arte Pop, apareciam como um signo da distância do novo mundo moderno.
Entre ambos os momentos de dois séculos tão diferentes, o projecto moderno foi um desejo longínquo, à distância a que ficava o resto do mundo, e um encontro adiado.
Pedro Lapa
Director do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado
CERCA DE 1860
A introdução tardia do Romantismo nas artes visuais em Portugal representa ainda assim uma ruptura com os convencionalismos estéticos neoclássicos, fundados no cânone e no virtuosismo da sua imitação e actualização. No entanto, importa referir que entre o fim do neoclassicismo e o Romantismo mediou meio século, em que o país, envolto em guerras civis, não registou manifestações relevantes nas práticas artísticas. De facto, com o Romantismo tem início o mundo moderno e o seu entendimento estético já não reproduz o ideal para, em vez disso, se confrontar com as adversidades da experiência do mundo. O génio do artista é instituído como fonte de inspiração e a individualidade da sua visão valorizada. O mundo passou a ser um lugar instável habitado pelo sujeito.
A pintura de paisagem, desenvolvida por Cristino da Silva entre outros, votou-se à exploração das amplas profundidades e dos espaços incomensuráveis que ultrapassam o entendimento da razão humana, aproximando-se de uma estética do sublime. Contrariamente, a pintura de costumes, praticada por Anunciação, Marques Pereira ou Resende, experimenta a proximidade de um sujeito histórico até então desconhecido: o povo. Os retratos de Lupi, Cristino da Silva entre outros não são mais a consagração simbólica de um lugar social mas um vislumbre da inquietação do sujeito, tal como acontece na escultura O Desterrado de Soares dos Reis. A História e a pintura ou escultura que sobre ela, Metrass ou Simões de Almeida realizam, povoa-se de pequenas narrativas com heróis que desesperadamente perseguem um sonho impossível.
O sujeito e a adversidade do mundo inauguravam assim a condição moderna.
Pedro Lapa
1960’S
Os anos 60 em Portugal, sob a ditadura fascista e o isolamento imposto, assistem à distância a um conjunto de transformações económicas, sociais, políticas e culturais pela Europa e América do Norte que questionam e alteram profundamente o mundo moderno. De um modo geral, os artistas, mesmo aqueles que não emigraram, adoptaram linguagens próximas das que simultaneamente surgiram, principalmente no contexto europeu. O Nouveau Réalisme e a Pop Art seriam assimilados pela Nova Figuração, que se desenvolveu na sequência das obras de Paula Rego e de Joaquim Rodrigo, redescobrindo uma pulsão narrativa e crítica da realidade política. Os seus desenvolvimentos integraram linguagens gráficas e novos materiais industriais com Lourdes de Castro e René Bértholo, todavia o contexto sócio-cultural português era ainda o de uma pré-modernidade, o que limitava o fascínio pelos novos códigos do consumo e dirigia a atenção de artistas como Nikias Skapinakis para a própria condição existencial. Por seu lado, a Op Art com Eduardo Nery e a pintura sistémica com Jorge Pinheiro, desenvolveram pesquisas sobre a percepção ou a objectualidade do motivo e deram continuidade ao movimento moderno, que a história de arte portuguesa conhecera de forma episódica. O Letrismo, explorando a continuidade entre palavra e imagem, foi inicialmente abordado por João Vieira e sequentemente por António Sena numa perspectiva gestual ou então por Ana Hatherly e pelo grupo Po.Ex. de forma conceptual. Serão as obras de Helena Almeida e de Alberto Carneiro, desenvolvidas a partir da segunda metade da década, que vêm progressivamente questionar a estabilidade dos géneros pintura e escultura e abrir questões sobre os seus limites e o campo alargado.
A modernidade, quase sempre longínqua, no momento em que conhecia o fim da relação entre vanguarda e emancipação generalizava-se nas práticas artísticas portuguesas.
Pedro Lapa