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Biografia do traço. Desenhos da colecção MNAC - 1836//2024

2024-10-25
2025-01-26
Curadoria: Maria de Aires Silveira

Biografia do traço. Desenhos da colecção MNAC - 1836//2024

O Desenho na coleção do MNAC

O Desenho – a disciplina mais próxima da ideia – é um eixo pedagógico central ao treino da mão e da visão. Apesar da sua importância, o seu ensino estruturado tardou a chegar a Portugal e, ao contrário do que aconteceu em vários outros países europeus, nasceu no seio de um museu.

Foi no Porto que João Baptista Ribeiro (1790-1868), pintor real, grande cultor do desenho e ciente do seu valor pedagógico, convenceu o futuro rei D. Pedro IV a criar na Invicta um museu de pinturas e estampas. Pouco tempo depois, é-lhe confiada a organização dessa instituição (Museu Portuense, embrião do que veio a ser o Museu Nacional Soares dos Reis) na qual Baptista Ribeiro se empenha, e cujo regulamento estabelece os princípios pedagógicos por que a instituição se deverá nortear. Será nessa escola informal que os liberais vitoriosos se irão inspirar. A criação das Academias de Belas Artes de Lisboa e Porto chegará, enfim, em 1836, marcando as coordenadas da criação artística assente no conhecimento e na prática do desenho.

A coleção do MNAC acolhe muitos trabalhos oriundos dessa tradição académica nacional, formadora das demais disciplinas artísticas. Depois de mais de um século guardados nas reservas do museu, esses trabalhos foram estudados e preparados para serem expostos em 2020. A pandemia, contudo, obrigou ao seu encerramento pouco mais de um mês após a sua abertura.

No momento em que preparamos a reabertura ao público da exposição de longa duração da coleção, não poderíamos deixar de partilhar de novo estes trabalhos seminais da autoria de muitos dos nomes da nossa história da arte, aos quais juntamos ainda outros, contemporâneos – num testemunho do modo como o tempo, em arte, se dobra e desdobra, com regras próprias que cada criador(a) reclama para si mesmo(a).

Emília Ferreira

Maria de Aires Silveira

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O ESPAÇO FECHADO DA MELANCOLIA

António Faria cria florestas desenhadas, mas as suas intenções são outras. Explora uma tristeza profunda através de pequenos gestos, em traços ondulantes e precisos, inesperadamente criativos de folhagem miúda, de um pequeno ramo que a outro se segue até ao emaranhado entrelaçado e sensível. Na expressão mágica de um natural recolhimento pressente-se a importância da melancolia e desse distúrbio ou distorção do humor, nas linhas sinuosas das árvores, por vezes, em experiências imersivas, outras, no espaço fechado de uma sala, agravado pela reduzida utilizaçao de cores, em azuis, pretos ou vermelhos vibrantes.

Sousa Pinto, autor português de longe, escolheu França como o espaço fechado das suas paisagens, em abordagens campestres, próximas deste prazer minucioso, experimentado nos traços pormenorizados das árvores e de breves e inúmeros filamentos naturais.

Uma abreviatura temporal centenária aproxima a técnica de dois artistas, tão diferentes no traço. A liberdade do gesto de António Faria contrasta com o rigor de desenho de João António Correia. Em comum, trataram a técnica do repasse como finalidade última da emoção. A frente do papel, colorida e manchada como o artista pretende, surge através do domínio do trabalho de repasse, no verso, para a obtenção do efeito desejado e preciso. Ficamos com o outro lado da melancolia e a expressão mais profunda do retrato de um jovem.

Maria de Aires Silveira

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DIÁRIOS DE VIAGEM

Os Diários, tanto os de viagem, como o ilustrado, aproximam cenários de épocas distantes em cerca de 200 anos. Miguel Ângelo Lupi foi destacado para Luanda como funcionário público. Registou, em diário gráfico, esta experiência pessoal, como se fosse um repórter numa realidade estranha e desconhecida, em paisagens exóticas, onde revelava o olhar de antropólogo, sensível e realista.

Também Cristino da Silva e Tomás da Anunciação experimentam o prazer da viagem e descoberta das regiões do país, ao traduzirem o sentimento na observação do natural. Assim, o espanto dos artistas pelos horizontes longínquos, as árvores penosamente retorcidas e o isolamento do cavalo exprimiam as temáticas da geração romântica, a melancolia, o drama, a morte e o efémero.

O título de Luís Silveirinha sugere um diário visual pessoal, mas impõe a ilustração de uma figura irreal, de uma época distante ou de um país longínquo, em traços vigorosos, próximos da gravura, mas impactantes e misterioso, como se pertencesse a um espaço-tempo alternativo. Combina o estranho e a evocação do passado, numa tensão poética, onde presente e ausente coexistem.

Maria de Aires Silveira

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OS OUTROS E OS IMAGINÁRIOS BIZARROS

Os outros… os que nos intimidam e afligem e a quem viramos as costas. Revemo‐nos
na diferença, através de gestos e olhares. As situações são transversais ao tempo,
entre a contemporaneidade e a época oitocentista.
As criaturas bizarras de Luís Silveirinha pairam num fundo tratado em mancha,
inspirado em Columbano que apresenta, em sombreados violentos, um desenho do
Adamastor. Impõe os sentimentos de medo e coragem perante o desconhecido, como
valores icónicos “quando uma figura / se nos mostra no ar, robusta e válida. / De
disforme e grandíssima estatura (…)” revela Luís de Camões, no Canto V do poema
Os Lusíadas. São os outros, os que enfrentamos em imaginários assustadores,
ensombrados por gigantes proporcionais aos nossos temores.

Maria de Aires Silveira