Uma instalação site specific
Após residência artística no Museu Nacional de Arte Contemporânea, a exposição intitulada A Pintura Sublimou o Espírito, patente no Jardim de Esculturas do MNAC até 30 de outubro, é o fruto de um trabalho e pesquisa persistentes, de Nelson Ferreira. O artista decidiu prestar homenagem aos artistas académicos e ao seu conhecimento profundo da arte do desenho e da pintura.
Nelson Ferreira pintou os estudos a aguarela usando a desafiante técnica de alla prima – pintados diretamente a olhar para as estátuas, sem lápis, apenas com as tintas e pincel. Sendo aguarelas sobre papel absorvente, o artista tem de pintar tudo sem hesitar, sem poder corrigir nenhum erro. Para as telas de maior formato, pintadas com tinta acrílica, houve recurso a fotografia de modelo[1] para criar diálogos afetivos entre esculturas e seres humanos.
A residência artística, sem paralelo[2] na história do MNAC, levou o artista a criar obras pictóricas com base nas esculturas que povoam um espaço único em que, no crepúsculo, as sombras se tornam imagens fantasmagóricas e difusas.
Sobre o espaço
O espaço depurado do Jardim das Esculturas, remete-nos para os jardins islâmicos ou mouriscos[3] ou para uma Lisboa antiga, mas, mais implicitamente, para um Hortus Conclusus medieval, o paraíso terrestre do Cântico dos Cânticos, cuja simbologia mais tardia passou a remeter para Maria, virginal, sem pecado, num jardim murado, a representação do seu corpo, para sempre, sem mácula. O nome “hortus conclusus” (que significa, portanto, “jardim fechado”) foi extensamente associado à representação da Virgem Maria, existindo inúmeras pinturas que a apresentam, e ao Menino, com esse enquadramento. Descrevia, no geral, um jardim de lazer, totalmente fechado. Tal tipologia foi particularmente popular durante o período medieval, associada em especial a espaços religiosos, como vimos, mas também domésticos, em particular para contemplação e recreação das damas. A maioria dos jardins fechados que se seguiram foram inspirados neste modelo e continuam a sê-lo até à contemporaneidade[4].
Um hortus conclusus clássico é dividido em quadrantes por quatro caminhos distintos, (o caminho de lajes, dividido pelo curso de água e pedras, como o que vemos no Jardim das Esculturas) que podem ou não levar a qualquer lugar, dependendo de como as paredes circundantes ou claustros são dispostos. No caso de caminhos que não levam a aberturas, bancos ou nichos de contemplação podem ser construídos, criando uma espécie de destino para o caminho. No meio de um hortus conclusus, também é típico ver uma fonte, piscina, lagoa ou poço, referenciando a água da vida e o papel de Maria em trazer vida ao Menino (no Jardim do MNAC agora não existe água, mas aquele sulco no chão foi pensado para estar coberto de água).
Simbologia do azul e técnica pictórica
Será o Azul o matiz escolhido para estas pinturas resistentes à luz e à água, que poderão durar milénios e serem contempladas por díspares olhares. Com uma vasta simbólica também associada à Virgem, em particular desde o século XII[5].
Fazendo as suas próprias tintas, Nelson Ferreira utiliza pigmentos modernos e também antigos como o lápis-lazúli[6], extraído das minas de Badakhshan[7] (visitadas por Marco Polo), nas montanhas de Afeganistão. Deste lápis lazúli em particular são conseguidos um sem número de matizes em que as centenas de tons de azul levam à ilusão de pinturas multicoloridas.
De acordo com o artista, “o lápis lazúli afegão é muito superior ao chileno ou russo, para usar como pigmento. Isso tem a ver com a pureza da lazurite. O lápis doutras partes do mundo é igualmente belo para joalharia, mas inferior ao ser moído — devido ao excesso de calcite e de outros contaminantes. O lápis afegão tende a ser violáceo, o de outros lugares é mais esverdeado, desbotado ou acinzentado. Os pintores sempre preferiram o violáceo.”
Embora por vezes se afirme que o lápis lazúli afegão é difícil de encontrar no mercado, pela sua experiência de décadas Nelson Ferreira, que há 20 anos que coleciona diferentes tipos de mineral, testemunha o contrário[8].
Uma pedra de lápis-lazúli de alta qualidade contém veios azuis (lazurite, mais recentemente, conhecida como azurite), veios brancos (calcite) e pontos amarelos (pirite), o que nos remete logo para a simbologia do céu, nuvens e estrelas. A substância “celestial”, que serviu para pintar o manto da Virgem Maria, e que era visto como um pedaço de céu que tinha alcançado a terra, era de tal elevado valor comercial e simbólico, que em Portugal, em termos documentados, só Lourenço de Salzedo a coloca numa das pinturas do retábulo do Mosteiro dos Jerónimos[9].
É este o contexto técnico e simbólico desta proposta de Nelson Ferreira. Nesta pintura ligada à simbólica alquímica da utilização do lápis-lazúli, o artista impõe-se a si mesmo a utilização do Azul.
Há 600 anos, já Cennino Cennini escrevia no seu tratado de pintura que o lápis-lazúli era o mais importante dos pigmentos, “cor nobre e bela, a mais perfeita de todas as cores, da qual nada se pode dizer ou fazer que a sua qualidade não ultrapasse”[10].
Neste ciclo de obras contemporâneas fica atestada a reverência de Nelson Ferreira para com os grandes mestres clássicos e de tradição académica, e o modo como, para o artista, o conhecimento das técnicas antigas se torna um relevante desafio para a sua pesquisa plástica contemporânea.
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[1] Estes trabalhos compreendem o recurso a diversas técnicas.
[2] Ao longo dos anos, houve diversas residências artísticas no MNAC. Contudo, Nelson Ferreira foi o primeiro artista em residência no espaço do jardim, por vários meses, ao longo dos quais realizou obras com base nas esculturas aí presentes, tomando-as como mote para uma proposta laboratorial plástica que envolve o uso de técnicas antigas e materiais tão frágeis como a aguarela, testando aqui os limites dessas técnicas perante os elementos, fazendo desta residência um projecto único.
[3] “… esta intervenção contextualizada nos anos 80 e 90 do século passado, reintegra algumas das características dos antigos jardins privados de Lisboa antiga, remetendo ainda para ideários islâmicos ou mouriscos…” in DGPC | Jardins da Cultura (patrimoniocultural.gov.pt)
[4] Sobre a perenidade deste modelo de jardim, ver, por exemplo, Aben, Rob; De Witt, Saskia. (1999). The enclosed garden: history and development of the Hortus Conclusus and its reintroduction into the present day urban landscape. Rotterdam: 010 Publishers.
[5] Sobre este assunto, ver Pastoureau, Michel. (2016). Azul: História de uma cor. Trad. José Alfaro e Anabela C. Caldeira. Lisboa: Orfeu Negro.
[6] Sobre este pigmento, ver por exemplo Lapis Lazuli. Magia del blu. (2015). Catálogo da exposição homónima no Silver Museum, Pitti Palace, Florença, Sillabe. Curadoria de Maria Sframeli, Valentina Conticelli, Riccardo Gennaioli e Gian Carlo Parodi.
[7] O pigmento tem tido uma história recente particularmente problemática, do ponto de vista político. Como se pode ler neste artigo, "As minas de lápis-lazúli da região de Badakhshan são um concentrado do problema que afeta todo o país. A exploração mineradora é a segunda fonte de renda mais importante para os talibãs", afirma a Global Witness. No entanto, os talibãs não são os únicos. As minas também podem interessar ao grupo jihadista Estado Islâmico, implantado no leste do Afeganistão.” In Exploração ilegal de lápis-lazúli financia insurreição afegã | Exame, Publicado em 07/06/2016; Cf. Lapis lazuli, o ouro azul do Talibã no Afeganistão | Ouro e tempo (goldandtime.org).
[8] “As empresas que fornecem esses pigmentos adquiriram toneladas de lápis, geralmente compradas a revendedores que já as tinham comprado antes de os talibãs tomarem o poder na região, e que durarão por vários anos de produção de pigmento (pois o mercado para belas-artes é minúsculo). Na prática, são lá comprados dezenas de milhões de euros por ano e há imensos relatórios sobre isso, apesar da conjuntura política da região. A quantidade de lápis afegão que já está no mercado é mais do que suficiente para a pequeníssima indústria de pigmentos especializados de artista.” Testemunho do artista, durante o processo desta exposição. Para mais dados sobre este tópico, ver: https://artreq.co.uk/products/wallace-seymour-dry-pigments-lapis-lazuli-de-luxe-extra-deep-afghanistan; https://www.naturalpigments.eu/lapis-lazuli-afghanistan-pigment.html?___store=naturalpigmentseu; https://www.supremepaint.co.uk/products/lapis-lazuli-afghan-highest-grade-20ml; https://www.supremepaint.co.uk/products/lapis-lazuli; Alguns sites até vendem diretamente do Afeganistão: https://www.afghanpreciousminerals.com/product/lapis-lazuli-100-natural-pigment/
[9] Devido ao facto de o lápis-lazúli chegar à Europa pelos portos italianos, particularmente o de Veneza, o azul ultramarino era com frequência e abundância usado em Itália nas pinturas mais importantes ou grandiosas. Fora de Itália era usado com mais parcimónia. O português Filipe Nunes dizia que "o azul Ultramarino, como é tão caro não se usa muito, e, portanto, se não sabe o uso dele tão facilmente". Francisco Pacheco referia também "que nem se usa em Espanha nem têm os pintores espanhóis capital para o usar". Devido ao seu custo, em várias obras flamengas do século XV, o azul ultramarino foi aplicado numa fina camada superficial sobre uma camada de azurite, muito mais económica, que dava o tom geral azul. Este procedimento também foi empregue em Itália. Em Portugal, até há data, apenas foi inequivocamente identificado numa das pinturas de Lourenço de Salzedo que integra o retábulo do mosteiro dos Jerónimos, estando publicada correspondência relativa à sua aquisição em Itália, em que intervém a rainha D. Catarina. O uso do nome azul ultramarino está documentado, pelo menos, desde 1571. In Ciarte | Azul ultramarino. Cf. Serrão, V., "O retábulo-mor do Mosteiro dos Jerónimos (1570-1572) pelo pintor Lourenço Salzedo", in História e Restauro da Pintura do Retábulo-mor do Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa, IPPAR, 2000, pp. 17-77. Apesar de o uso do pigmento estar igualmente documentado nas primeiras camadas dos Painéis de S. Vicente de Fora, de Nuno Gonçalves, a cor usada resulta da junção de azurite e lápis-lazuli, tornando-se assim mais acessível. Já na obra de Salzedo, o uso do lápis-lazuli não sofreu quaisquer misturas de outros pigmentos.
[10] Cennini, Cennino. (2003). I Libro dell’Arte. Edição de F. Frezzato, Vicenza, NeriPozza Editore.