Câmara Lenta
A casa e a esfera doméstica têm constituído um dos vetores do trabalho de Mimi Tavares. Imagens de interiores desabitados são o ponto de partida para esta série de desenhos e pinturas que nos devolvem estes espaços não exatamente no sentido mimético do tema.
Estes interiores são ambíguos e desconcertantes, por vezes, à beira da desintegração, assomando como espaços inquietantes: desprovidos de gente, pejados de perspetivas inusuais e contraditórias, neles coabitam móveis e objetos de diferentes tipologias, de canapés, sofás, cadeiras, secretárias e camas a espelhos e mesas de encostar, numa cronologia incerta que vai de oitocentos à época moderna.
Embora anónimos, esses objetos são-nos familiares, pois crescemos a vê-los na casa dos avós, dos pais, na nossa, tendo-nos porventura calhado por herança, gosto ou necessidade – e, aqui, surgem resgatados e como que providos de uma segunda vida, de uma nova oportunidade.
Corredores, quartos, salas passagens dirigem o nosso olhar para múltiplas direções, prolongando-se ilusoriamente as linhas de força estruturantes destes ambientes inquietantes como que para além do suporte físico do papel ou da tela, sugestão reforçada por paisagens que se abrem e se espraiam pelas paredes circundantes. Desconcertante é esta construção espacial, ilusória e fragmentada, na medida em que, por vezes, estas passagens não conduzem a lado algum.
Ficamos mais desconcertados ao verificar que coexistem aqui diversas tomadas de ponto de vista, de contre-plongées tão acentuados, tirados de cima, tetos em estuque profundamente rebatidos que contradizem imediatas visões frontais fragmentadas de paredes e janelas, num processo de sobreposição, passagem e acumulação. Os próprios móveis e objetos, alguns deles quebrados, evidenciando o desgaste do uso e a passagem do tempo, surgem de forma inusitada, por vezes suspensos do teto invertidos, outras vezes flutuantes, pousados simplesmente ou acumulados uns sobre os outros. Diversas e fragmentadas memórias emergem nestes espaços ambíguos, num tempo incerto, suspenso, onde possíveis narrativas baseadas nas experiências de cada qual procuram dar sentido a esta estranheza espacial, cronológica e narrativa, onde está ausente qualquer lógica racional ou sentido imediato.
Este é o espaço da solidão e da memória, servido por um desenho minucioso que se alia à própria essência da pintura, quer no tratamento da cor de uma coberta que se prolonga e derrama ilusoriamente em leito livre de tinta como na luz difusa que os ilumina, fantasmática por vezes, apropriando-se luz e cor dos próprios acidentes naturais, como manchas de humidade do suporte, pigmentadas, cromaticamente reaproveitadas e trabalhadas a tinta, acidentes naturais e ocasionais deliberadamente integrados na própria composição.
Este trabalho situa-se na fronteira entre a ordem e a desordem e desafia a nossa perceção, apresentando espaços desconstruídos que evocam tempos suspensos ou singulares, diversamente configurados, contando várias histórias em simultâneo, porventura das gentes que neles habitaram, numa lógica espacial ilógica que suscita narrativas mais ou menos inverosímeis que a nossa memória e experiência procuram clarificar. Na única tela exposta, a própria luz, dramatizada, surge em negativo, embora colorida, reforçando também a singularidade elaborada destes espaços de memória.
Apenas no domínio da memória existem estes espaços e os objetos descartados, fora de moda e do tempo cronológico.
Rui Afonso Santos