Passado mais de um século sobre a grande exposição da obra de Miguel Lupi, período em que esta manteve alguma visibilidade possibilitada através de pequenas exposições e também pela sua presença excepcional na própria colecção, o Museu do Chiado - Museu Nacional de Arte Contemporânea apresenta uma nova retrospectiva da sua obra. De facto, a qualidade da sua pintura em muito contrasta com os seus colegas de geração, seja pelo domínio sensível na manipulação da cor, seja pela composição neo-clássica transportada para poses e circunstâncias de um outro tempo, o do seu presente afectado por uma modernidade que só muito tangencialmente o impressionou. Nisso as semelhanças do seu discípulo Columbano Bordalo Pinheiro são por demais evidentes. Retratistas principais das respectivas gerações privilegiaram a herança de um fazer trans-histórico, alicerçado numa concepção intemporal da pintura, no entanto o presente de um tempo absolutamente outro interpôs-se voluntária ou involuntariamente, gerando uma modernidade contida e particular que não pode deixar de ser relevada numa análise actual.
Miguel Lupi foi assim o pintor de urna sociedade recentemente nobilitada. A sua obra organiza-se como um caleidoscópio dos seus valores personificados pelos retratos dos protagonistas, sejam eles o Duque de Ávila e Boiama, o engenheiro Miguel Pais, o actor Augusto Rosa, o poeta Bulhão Pato, a mãe de Sousa Martins, a Marquesa de Belas ou a Viscondessa de Castilho. Do poder político às figuras femininas quase saídas das cenas da vida romântica, desse tempo lisboeta de Eça de Queirós e que também foi o seu, passando pelos intelectuais sonhadores até ao engenheiro visionário de uma nova época, todas estas figuras se complementam num retrato colectivo e acrítico da vida pública portuguesa. As magníficas séries de desenhos, por vezes rápidos e espontâneos, apreendendo o movimento em pequenos gestos, fazem o contraponto à mundaneidade do retratista, revelando a intimidade de uma vida familiar burguesa. Os episódios históricos desenvolvidos em amplas composições são eles o sintoma de um imaginário nacional enredado na dificuldade em adaptar a memória mitificada dos empreendimentos históricos à afirmação de um presente histórico que há muito escapava a Portugal. Neste sentido o D. João de Portugal que pintou é a expressão mais declarada do retorno dessa familiaridade estranha, como de resto não poderia a própria pintura no tempo da máquina a vapor e da arquitectura do ferro retomar com novo fulgor criativo as grandes composições históricas sacralizadoras do poder, possíveis dois séculos atrás.
Pela obra de Miguel Lupi podemos assim descobrir a sedimentação dos valores e impasses da cultura de um país que via o mundo moderno passar ao largo e se recolhia na ilusão voluntária de uma verdade intemporal, tal como a sua pintura se afirmou na reverencialidade a uma ordem social de impossível sacralização e necessariamente transitória, quedando-se ainda tímida para outras ordens de considerações. Mas é sobretudo com ele que a pintura se redescobre em Portugal na segunda metade do século XIX.
Esta exposição foi possível pela colaboração de todos os coleccionadores e entidades que disponibilizaram as suas obras para a sua realização. António Osório de Castro foi de uma extrema generosidade ao disponibilizar o espólio de Miguel Lupi e facultar o seu conhecimento sobre o artista, o que contribuiu decisivamente para a investigação e exposição que agora se apresenta. O Instituto Português de Museus, através das suas equipas e especialmente da Divisão de Documentação Fotográfica, foi um imprescindível aliado neste trabalho que contou também com o empenhado envolvimento da equipa do Museu do Chiado. Nuno Ferreira de Carvalho foi o editor deste catálogo com magnífico design gráfico de Vera Velez.
Adelaide Ginga Tchen desenvolveu um importante ensaio sobre a afectação da realidade na pintura de Lupi e a sua relação com as questões políticas da época. O trabalho das comissárias será certamente um marco na bibliografia e no destino da compreensão deste grande artista. Cristina Azevedo Tavares desenvolveu um amplo estudo sobre a obra do artista e a sua articulação com os contemporâneos, perseguindo o seu desenvolvimento, as influências e as singularidades afirmadas.
Maria de Aires Silveira desenvolveu o extenso trabalho de pesquisa, que permitiu reunir e fichar todas estas obras não só na exposição como no catálogo, o mais completo que se realizou sobre o artista, como também averiguar o historial de exposições e bibliografia de cada pintura. Num vasto ensaio estudou atentamente toda a recepção crítica da obra mostrando como os diversos paradigmas da historiografia consideraram e interpretaram em épocas tão diversas este artista que continua a impressionar-nos e a suscitar renovadas interpretações.
Pedro Lapa
Director do Museu do Chiado - Museu Nacional de Arte Contemporânea