Paula Soares: I'm Here Now (1996)
Paula Soares: I'm Here Now (1996)

Galeria do Bar

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I'm Here Now

Paula Soares

1996-02-28
1996-04-21
Curadoria: Pedro Lapa

We're All Here Now

O vitelo de Tomás da Anunciação, realizado em 1873, é uma pintura tardo-romântica, de género animalista, e que pela sua atenção descritiva prestada aos aspectos biológicos, bem como à luz natural que irrompe no último plano, antecipa o Naturalismo que viria a ser dominante na pintura portuguesa do último quartel do século XIX. As superfícies cromáticas empastadas, que configuram o pelo do animal, exibem assim mais do que a transposição mimética para a pintura de uma sensação visual - provocada pelo real,- uma factura que define um entendimento específico e pretensamente original da própria pintura e a torna única, aspecto este salientado pela assinatura.

Segundo Walter Benjamin esta existência única da obra de arte no lugar em que se encontra, designável pelo aqui e agora, constitui a sua autenticidade e autoridade ou seja, a sua aura. A reprodutibilidade a que a fotografia a sujeita substitui a ocorrência única pela ocorrência em massa, deslocando consigo a ênfase da obra para a sua recepção. Cada sujeito actualiza sentidos por via de um acesso directo que não esbarra com o privilégio da propriedade que o carácter único da obra suscita.
Além dos efeitos que esta situação criou na divulgação das obras de arte, ela tem vindo a ser pensada por alguns artistas como consciência da obra relativamente à sua posição no sistema de trocas socio-económicas, substituindo o valor de troca pelo valor de uso. Mais do que um alargamento do campo social da arte, forjado por esta situação, a fotografia permite questionar o papel que a mais-valia, produzida pelo carácter único e material do gesto pictórico, desempenha na construção do sujeito e a função dessa ficcionalidade no sistema de trocas.

A substituição da pintura - sacralizada no museu - pela fotografia vem inscrever uma primeira intencionalidade de teor social nesta exposição de Paula Soares. Por outro lado, a inserção de uma legenda (I'm here now) substituindo-se à assinatura levanta e subverte o latente desta. É que a assinatura, durante o Modernismo, na ausência de uma transparência da obra de arte à ordem objectiva do mundo da representação, veio participar e assumir a subjectividade da opacidade da pintura ou seja, inscrever o valor de originalidade da obra. Neste trabalho de Paula Soares a legenda ao declarar a singularidade fundadora da aura da obra de arte, todavia num medium que a nega, gera aparentemente um curioso paradoxo.

A apropriação de uma obra do Romantismo - movimento que reclamou o conceito de originalidade, - radicalizando pressupostos desconstrutivos, interroga o próprio conceito de originalidade que eventualmente terá sido o núcleo constitutivo das questões anteriormente abordadas. A pretensa originalidade romântica de uma pintura como O vitelo de Tomás da Anunciação não resiste, enquanto tal, a uma análise mais detalhada que considere a sua genealogia como uma teia de relações formada por contínuas actualizações. Assim a semelhança desta pintura com outras que Constant Troyon realizou e Anunciação terá visto em Paris é flagrante, por sua vez a pintura animalista holandesa do século XVII, nomeadamente de Paulus Potter e Aelbert Cuyp, não será alheia àquele. Estamos então perante uma reapropriação contínua que se joga para lá dos seus pressupostos de aparente novidade. Por outro lado, é a própria noção de origem que assim se desvanece, já que a suposta cópia do natural é cópia de outra cópia. Como Rosalind Krauss demonstrou, a originalidade da obra de arte está intimamente ligada à constituição do mito da novidade que enformou o Modernismo e no presente trabalho é submetido a uma crítica desmistificadora que encontra na origem a repetição.

O here now da legenda desta fotografia assume ironicamente um sentido oposto ao da definição de autenticidade, inscrevendo o circunstancial da ocorrência no presente com a implícita consciência da sua dimensão conceptual e operativa. A atenção à recepção e circulação da obra como conceito nela inscrito é amplificada com a oferta ao público de um calendário onde a inscrição dos dois tempos, o da realização da pintura e o da fotografia, com justaposição da mesma legenda, reforça o sentido de actualização enquanto afirmação de um presente e das suas possibilidades. Um outro aspecto que advém da apropriação e recontextualização da obra é o de uma possível dimensão metafórica a que a imagem de iniciais pressupostos naturalistas é submetida, não só pelo facto de se articular com outros trabalhos de Paula Soares de pendor alegórico mas sobretudo como corolário das operações mencionadas. O vitelo sugere o conceito de potencialidade por oposição a acto. E como tal supõe a consciência da sua actualização num fluxo temporal. A legenda para tal contribui, não como reposição da transparência dos signos a uma ordem previamente anunciada, mas como realização de um novo horizonte de possibilidades que a obra de arte sempre implica. A circunstancialidade e a sua consciência histórica constituem a assunção de uma forma operativa potenciadora das relações da arte com a própria vida.