Rosa Almeida - Honni soit qui mal y pense
Rosa Almeida - Honni soit qui mal y pense

Sala Polivalente

entrada: Condições Gerais

Honni Soit Qui Mal Y Pense

Rosa Almeida

1996-04-30
1996-06-30
Curadoria: Pedro Lapa


O MUSEU E O SEU DUPLO

A exploração da linha tem sido uma dominante nuclear desde os primeiros trabalhos apresentados por Rosa Almeida. Talvez por isso o género preponderante desenvolvido ao longo das suas exposições seja o desenho. Todavia os problemas suscitados por aquele motivo não se confinam à bidimensionalidade circunscrita pelo próprio género e, ainda que nele se fundem, é na exploração contínua de outras áreas, assim miscigenadas, que os seus trabalhos se vêm afirmando. A linha configura um movimento capaz de se metamorfosear - fora do plano que lhe deu origem -num cabelo enredado em muitos outros e com isso convocar uma temática centrada no corpo feminino, como aconteceu em situações mais recentes, ou numa relação tensional que revela o rumorejar da linguagem.
As pequenas peças apresentadas nesta exposição circunscrevem súbitos instantes de uma relação íntima e prosaica do público com obras do museu. Teias de fios de cobre sobrepostas e deslocadas relativamente às palavras inscritas na parede, como grafittis, constituem o modelo genérico destes trabalhos. Eles são o sinal de uma tensão travada num lugar, por um itinerário, que o entrecortado 'fio' discursivo do monólogo interior de vários sujeitos atravessa. Pela natureza dos comentários, estes deixam pressupor um fundo vernacular anterior ou se se quiser alheio ao laço cultural que envolve a experiência estética, já que esta pressupõe uma competência que é antes de mais disponibilidade relacional. Assim estamos perante situações que recusam um entendimento que identifique o objecto estético na sua história e antes o apropriam a seu bel-prazer. São o resultado de um movimento que esvazia os conteúdos das obras apresentadas pelo museu.
Estas simulações discursivas inscritas nas paredes da Galeria supõem uma flutuação omnisciente da voz interior da própria para o anonimato da de uma terceira pessoa, com isso procuram uma dimensão hiperreal que se afaste do confessionalismo subjectivista e expressivo e possibilite voltar o caricatural da circunstância contra si mesma, ainda que nem sempre tal aconteça. Estão votadas ao gratuito e ao efémero do íntimo de um passeante solitário. Pelas suas características configuram aquilo a que Marc Augé chamou o não-lugar. A relação que os indivíduos estabelecem com o espaço museográfico - suposto ou duplicado nestas pecas - é a de uma contratualidade solitária que, por um lado, os liberta dos condicionalismos habituais e se oferece como mais um qualquer espectáculo onde tudo perdeu a identidade e a história; por outro, a solicitação da observação das obras repõe compulsivamente o residual do sujeito não o libertando da sua identidade singular como seria suposto acontecer com os não-lugares propriamente ditos. É na ambiguidade desta situação que o museu é encarado por estas pecas de Rosa Almeida.
No trabalho artístico residirá uma gravidade que armadilha a flutuação de identidade criada pelos espaços de lazer característicos das sociedades pós-modernas e solicita uma partilha, uma ordem relacional como resistência. A presença dos fios de cobre, semelhantes a teias envoltas sobre as situações discursivas, pode bem ser uma metáfora, todavia a semântica caricatural das inscrições esboça um narcisismo que não é menos comprometedor. A tradição conceptual encontra o discurso popular e é também ela esvaziada e devolvida à condição de imagem.

Pedro Lapa