Depois das retrospectivas de Jorge Vieira e Nikias Skapinakis (neste caso restrita, por vontade do pintor, ao tema do retrato), a exposição que agora se apresenta, dedicada a Sá Nogueira, prossegue uma das linhas programáticas do Museu do Chiado que tem como objectivo inventariar, estudar e divulgar criticamente a obra dos mais relevantes artistas activos desde a década de 50. Assim se pretende, como noutras ocasiões já afirmei, estabelecer uma continuidade problematizante entre a colecção permanente do museu e as práticas contemporâneas, propondo uma espécie de arqueologia das múltiplas raízes artísticas da actualidade e esconjurando, como passado definitivo, as longas décadas em que o então Museu Nacional de Arte Contemporânea viveu ensimesmado sobre os mitos oitocentistas.
Os três artistas que compuseram este ciclo de exposições temporárias - Vieira, o escultor, Nikias e Sá Nogueira, os pintores - foram amigos de Escola e de tertúlias em que, com a participação de alguns outros - evocados nos diversos textos deste catálogo - se resistia vivencial e politicamente à ditadura salazarista e, simultaneamente, se propunha uma nova atitude artística que, com cumplicidade afectiva mas também juvenil distanciação, recusava a velha polémica dos anos 40 entre neo-realistas e surrealistas. Mas enquanto Jorge Vieira descobriu desde logo a liberdade e a responsabilidade da abstracção, Nikias e Sá Nogueira empenharam-se, ao longo dos anos 50, num realismo ingenuísta e lírico, devedor de grandes mestres do modernismo europeu, de Modigliani a Chagall ou de Bonnard a Matisse. No caso de Sá Nogueira, este gosto de reinventar a realidade foi sempre distanciado e irónico, direccionado para o registo de instantâneos, como se anunciasse já o futuro uso da fotografia e o fascínio pelo modo de produção do cinema. Retratos, identificados ou anónimos, algumas naturezas-mortas e as celebradas paisagens lisboetas unificam-se então pelos valores matéricos e a sumptuosidade da cor que transformam as formas esboçadas como o essencial do seu estilo.
Depois do ciclo da aprendizagem lisboeta, Sá Nogueira, através da produtiva estadia em Londres no início dos anos 60, descobriu a modernidade da pop, num percurso de sucessivas e entusiasmadas experimentações que, como bem observa a comissária da exposição, Maria Jesús Ávila, o aproximam das preocupações não dos seus amigos de geração mas de joven s artistas entretanto surgidos, por exemplo Lurdes de Castro. Deste fecundo período nasceram primeiro as colagens e depois uma série notável de técnicas mistas em que as solicitações da vida moderna e as novas problemáticas vivenciais e culturais deixam de ser temas, no sentido clássico da História da Arte, mas a materialidade mesma da obra, devedora da arte internacional que teve oportunidade de conhecer. Creio que nasceu ai também, ou definitivamente se actualizou, o gosto de Sá Nogueira pelo design e a decoração. Estas práticas, que encontraram terreno fértil na dinâmica equipa do atelier do arquitecto Conceição Silva, afiguram-se como componente significante da própria reflexão do artista e contribuíram para renovar conceitos de arte pública e obra artística total, quebrando a herança modernista do Secretariado de Propaganda Nacional de António Ferro, entretanto tingida de abusiva apropriação provinciana e nacionalista . A importância das realizações do pintor neste âmbito é destacada, neste catalogo, pelo exaustivo estudo de Rui Afonso Santos e eu posso testemunhá-las, recordando o primeiro lugar em que trabalhei, o magnífico atelier de Conceição Silva, na Rua da Escola Politécnica onde a chegada dos artistas era regularmente motivo de júbilo para todos, como se a aura de liberdade com que os víamos aquecesse mais ainda aquele espaço particularíssimo de Lisboa. Vivia-se ainda um tempo parentético mas cada vez mais acelerado e as artes - o urbanismo, e a arquitectura, as novas lojas e os novos objectos - foram um lugar poético, produtivo e politico de dizer não.Os anos 80 e 90 aprofundaram outra vocação de Sá Nogueira - a docência, primeiro no Porto e depois também em Lisboa - e ela coincide com uma espécie de inquietação melancólica e, no entanto, luxuriosa que lhe advém do regresso ao seu entendimento inicial da pintura, como espelho fragmentado, múltiplo e sempre aberto da realidade, ou melhor dos seus "temas", como ele próprio afirma. É esta contaminação de tempos, memórias e práticas que ldalina Conde aborda no seu texto, questionando, do ponto de vista da sociologia, os conceitos de geração e de vanguarda.
Trabalho colectivo, como sempre são as actividades do Museu do Chiado, este catálogo e esta exposição foram preparados ao longo de dois anos, e no meio de outros projectos, sob a direcção rigorosíssima de Maria Jesús Ávila, mas nele participaram todos os outros membros da equipa e também o próprio artista, os seus amigos e coleccionadores. A todos agradeço e ainda ao Arquivo Nacional de Fotografia.
RAQUEL HENRIQUES DA SILVA
Directora do Instituto Português de Museus