Desenhar um Rectângulo
Nesta instalação, , i. e. o vídeo e o desenho coexistem muito curiosamente no engendramento de uma mesma forma . A um rectângulo desenhado a carvão numa parede branca sobrepõe-se a projecção vídeo da sua realização. Tão simples como isso! No entanto mediante uma observação mais atenta várias questões começam a ganhar corpo e a complexificarem-se. Assim não estamos perante um rectângulo desenhado que a sobreposição do vídeo documenta, nem sequer perante uma sucessão de movimentos registados pelo vídeo tendentes a uma efectivação de que o desenho seria o fim. O vídeo e o desenho são nesta peça os possíveis vestígios de um mesmo gesto de definição, espacejados por uma ausência que os conjuga. Vale a pena determo-nos na análise deste processo em que a dimensão temporal desempenha um papel fulcral.
O rectângulo desenhado e o rectângulo filmado mantêm entre si relações temporais extremamente ambíguas. Diante desta instalação não é muito clara a ordem cronológica de um relativamente ao outro. Por um lado, o rectângulo a que assistimos à sua factura - o do vídeo - e que se sobrepõe ao desenhado, ser-lhe-ía supostamente anterior, todavia as linhas que a mão do artista vai traçando estão já concretizadas pelo desenho na parede, como se o passado existisse no futuro; por outro lado, a presença do rectângulo desenhado na parede e que supostamente designa um tempo futuro, ou seja, a completude do gesto que o vídeo regista, pré-existe à sua realização, como se o futuro antecedesse o passado. Estes paradoxos podem, por isso, explicar a razão pela qual a relação do vídeo com o desenho não é de causa e efeito, mas a presentificação de uma ausência a que a inscrição de um signo está sujeita . E aqui trata-se de um e o mesmo signo que a apresentação revela como descontinuidade intrínseca à sua condição.Recentemente numa exposição na Tramway em Glasgow, Pedro Moitinho apresentou um trabalho Untitled so far, 1998, onde este processo de descontinuidade surpreendia o visitante. O artista instalado num palco, sentado a uma mesa, descreve verbalmente, num computador, tudo quanto acontece no espaço da exposição. Simultaneamente, o écran do computador onde o artista faz as descrições, é projectado sobre a porta da saída da exposição e permite a sua leitura de forma não imediatamente associada à imagem do artista que, no meio da sala, escreve qualquer coisa a que ninguém tem acesso. Mais dissociado resulta o aparelho de fax colocado noutro ponto estratégico que debita um interminável rolo de papel com as mesmas descrições. De alguma forma o que também em Untitled so far está presente é a dissociação de uma unidade perceptiva através da dessincronização do presente.
Outro aspecto levantado pela articulação entre o vídeo e o desenho do mesmo rectângulo em , i. e. é o da virtualização a que ambas as formas são submetidas uma pela outra. Entre as presenças material e luminosa do desenho e em virtude da relação temporal estabelecida, ambas as presenças se tornam virtualidades do sentido que as excede. O sentido é então uma ausência, por isso desenho e vídeo são as respectivas actualizações, condenadas à virtualidade, fora de qualquer relação de causa e efeito.
O corpo é um terceiro elemento acrescentado pelo vídeo. Vive interposto entre o rectângulo e a sua projecçào, testa continuamente os limites deste rectângulo, desaparece e aparece, ultrapassa a ordem do visível que a projecção vídeo e o desenho definem e, sobretudo, contextualiza o sentido do próprio rectângulo. Em jogo para a mão esquerda, de 1997, Pedro Moitinho realizou um vídeo para os espaços da Fundação Antonio Ratti, em Como, que consistia nos movimentos de uma mão que borda alguns tecidos cosendo os próprios dedos. A sua apresentação era feita através de um monitor colocado no chão de uma sala cujos frescos apresentavam panejamentos sobrepostos uns aos outros.
O envolvimento do corpo na definição de um território que , i. e. explora tem assim alguma recorrência nos trabalhos prévios do artista. Aqui a sua existência é sobre o limite, com ele se confunde e sobre ele se interroga, já que o rectângulo desenhado é o limite da câmera de filmar. Neste sentido o limite, sendo um dado prévio - a projecção do vídeo -, é ultrapassado pelo corpo que o inscreve sob a forma de um rectângulo irregular. O desenho e o vídeo transformam-se nos vestígios de um acto de inscrição. A irregularidade e a repetição sublinham o adestramento a um território que o corpo assume e do qual, simultaneamente, está a mais. O seu sentido será o do excesso ou seja a impossibilidade de um território, de um rectângulo.
Pedro Lapa