O olhar percorre o chão de terra e ergue-se para uma adolescente que canta em pé, com os braços ao longo do corpo; vemo-la frágil, numa atenção aplicada ao ato de cantar que é quase desespero.
O olhar afasta-se e a cantora fica isolada no fundo de um vazio de memória tumular. A voz dilui-se na distância e da terra passa-se ao brilho verde da erva, depois à escuridão e ao céu noturno e tudo recomeça, «n’en finit plus».
Este percurso do olhar segue uma trajetória reta entre o plano aproximado da terra, abrindo-se na erva e tornando-se infinito no céu; suspende-se para observar e ouvir a jovem e afasta-se para lhe dar a dimensão mínima do seu/nosso isolamento tumular e universal.
Desaparecida da imagem a cantora permanece, através do silêncio que se gera solene e gradualmente, com o afastamento do olhar em direção ao céu.
O canto é um lamento encantatório e atemporal, fica no ouvido mesmo quando silenciado, e repete as palavras da canção La nuit n’en finit plus que Petula Clark escreveu e cantou sobre a música de uma canção dos Searchers, Needles and pins, de 1964.
João Onofre concebeu uma situação cénica – o lugar, a personagem, e as palavras cantadas -, traçou percursos para o olhar – da terra à cantora e, de novo, da terra, agora verde, ao céu - e oferece-nos, em rigorosa e austera composição cinematográfica, uma abandonada visão do indivíduo no mundo, através da ingenuidade angustiante de uma adolescente face à presença solitária e certa de um qualquer sofrimento ou fim.
Paulo Henriques
Diretor do MNAC