João Grama. Hoje o mar não deixa
A presente obra em vídeo de João Grama aborda as tensões percetivas entre o ver e o dizer, ao mesmo tempo que coloca a linguagem como centro duma teia de entendimento acerca da aculturação do natural.
Durante quatro anos, o artista observou e viveu entre os marisqueiros da zona de Vila do Bispo e Sagres, procurando desvendar a profunda relação que os mesmos estabelecem com o mar, fonte principal da sua subsistência. Contudo, o filme não se apresenta como um objeto etnográfico, é antes um trabalho sobre os contornos ontológicos da imagem e do seu confronto com a construção complexa de imaginários. E uma incursão sobre uma velha dialética entre visibilidade e dizibilidade, sobre os limites representativos da imagem e as apetências imagéticas de toda a linguagem.
Ao longo do filme existe uma imanência do ver, que não advém do domínio das imagens, mas que se alicerça no léxico descritivo do dar a ver através das palavras. Na imagem da noite inscrevem-se as vozes dos pescadores, naquilo que surge, primeiro, como uma imagem abstrata das palavras, e que se vai desenvolvendo como uma narrativa descritiva sobre o mar.
Através de um só take, a presença descritiva das palavras na conversa dos pescadores sobre as condições do mar, é explorada na sua apetência histórica de dimensão visual.
O que o filme demonstra é que nenhuma imagem poderia ser suficientemente descritiva do que os marisqueiros veem, apenas podemos contemplar a superfície duma representação que se perde na vacuidade de tudo o que já vimos e julgamos conhecer. Porque ver tornou-se, de forma demasiado literal, o modo de conhecer.
A paisagem que se estende diante dos nossos olhos é a da distensão da palavra, da malha tecida dos seus significados, perante uma contemplação que é um ato de ação e não um estar diante eloquente.
Ao confrontar-nos com a descrição na sua forma mais superlativa, João Grama reitera a importância de preencher os vazios da imagem, fazendo a elegia do poder de evocação da palavra e do significado primordial de poïesis, enquanto verbo de ação.
Emília Tavares