O trabalho de Miguel Ângelo Rocha revelou-se no início da presente década como uma articulada desconstrução dos géneros pintura e escultura. A parede como lugar privilegiado de ocupação do espaço, tradicionalmente associada à pintura, serve aqui de sustentação a formas escultóricas numa inequívoca miscigenação das possibilidades de ambas, que por vezes, como é o presente caso desta exposição, travam relações reconfiguradoras do espaço envolvente, transformando-se por isso em instalação. Importa salientar o papel que a arquitectura desta galeria tem na presente situação. A própria selecção de materiais e a exploração das suas possibilidades revela-se surpreendente e dá continuidade a esta problemática: a lona branca, muitas vezes pintada, recorrente em grande parte das suas esculturas, apresenta valores tridimensionais, enquanto os cabos de aço definem linearidades que articulam conjuntos diversos entre si e em prestam uma sugestão dinâmica. O objecto apropriado ou citado por um molde assume plenamente um valor escultórico e de modo geral é um elemento de actualização da presença do corpo directa ou indirectamente. A sua relação com os outros aspectos é contrastante e coloca-os em situações de precário equilíbrio. Um cromatismo branco confere um valor asséptico às suas peças, bem como uma grande envolvência, com isso supondo uma atmosfera hospitalar actualizadora de situações de forte pregnância como o binómio vida/morte.
Também desde a sua primeira exposição individual que uma temática fundada na relação tensional entre o orgânico e o inorgânico se tem revelado o território fecundo de várias experimentações. Em certos casos os seus trabalhos articulam fragmentos figurativos, associados à presença do corpo, com formas abstractas de geometrismo sintético, impondo a estas variadas distorções que mais não são que o efeito de uma força que fisicamente procura transcender-se. Este paradigma tem vindo a confrontar o corpo, ou o que o supõe, com as suas possibilidades e pulsões. Neste sentido a resposta de Miguel Ângelo Rocha ao projecto deste ciclo de exposições - o do desenvolvi mento de um trabalho autónomo a partir de uma leitura crítica da colecção de arte moderna do Museu do Chiado - não podia ser mais esclarecedora. A referência a Mário Êloy, nome maior do expressionismo português, é aqui pertinente, pois que a obra deste é atravessada pela articulação das polaridades orgânico e cristalino, assumindo com isso um conflito entre a empatia da expressão e a estabilização classicizante da forma. Evidentemente que o contexto de Miguel Ângelo Rocha é outro, o que não deixa de ser curioso e significativo é a presença das referidas polaridades na constituição da sua problemática. Assim o corpo, o cristal, uma escada e uns altifalantes travam entre si uma inquietante relação. Os torsos escultoricamente construídos por suportes de pintura - tela e grade - apresentam uma postura rígida e evocam o de um Auto-retrato de Mário Eloy. A sua disposição lado a lado, a que se sobrepõe um cabo de aço esticado na diagonal terminando ligado a um altifalante, coloca o problema da comunicação como dimensão determinante na construção do sujeito. A mudez dos altifalantes é aqui, sobretudo, evocadora deste aspecto. Permite, como tal, um universo alusivo senão mesmo projectivo por parte do observador e, estando estes directamente relacionados com as esculturas potenciam a interrogação de sentidos sobre as mesmas, bem como as inter-relações que elas estabelecem. A escada quebrada de forma desconstrutiva e irracional inscreve neste processo global uma impossibilidade ou seja, o próprio mito da queda. Ela não é o tradicional símbolo de transcendência, antes o signo de um temor. Oposta a estas tensões físicas e já pressentida na excessiva rigidez dos torsos, uma estrutura cristalina apresenta a marca da desarticulação de um membro que lhe esteve acopulado. Esta escultura surge assim como a consequente cristalização do processo - polo ameaçador da dinâmica do universo relacional. Na impossibilidade de estabelecer um tal circuito comunicacional a formalização surge não como ultrapassagem do processo mas como resultante da sua falência.
Por outro lado, a omnipresença do corpo no entendimento desta instalação pressupõe uma ampla fragmentação e reconsideração das suas parcialidades sem que uma totalidade seja apresentada. Ao corpo integral e socialmente constituído como sujeito e ser comunicante sobrepõe-se uma outra concepção entregue aos múltiplos jogos de linguagens irredutíveis entre si, por isso dividido em distintas experimentações. A sua conceptualização é absoluta e parece nascer da hubris ou seja, de um desejo de ultrapassar a arquitectura das possibilidades 'naturais' e como tal construir-se pela própria vontade. Todavia o presente historial em que se funda é o de uma total desintegração do sujeito e acresce o facto de que entre os diversos jogos de linguagem, a que cada parcialidade do corpo é submetida, não existe um denominador comum. Por isso jamais a era 'pós-humana' - a das reinvenções do corpo - poderá ser a da reconstrução do sujeito. Ela é antes a soleira de algumas parcialidades que vão ganhando autonomia relativamente ao conjunto de onde provêm e possivelmente uma estrita dependência das vontades que as manipulam.
Pedro Lapa
Junho 1996