HOMENAGENS CRUZADAS
ESTA exposição dedicada a Bernardo Marques foi pensada há cerca de três anos como uma homenagem, aproveitando para isso a data simbólica do centenário do seu nascimento. Mas, para mim, que assumi, enquanto directora que era então do Museu do Chiado, a responsabilidade de a realizar, ela foi sempre entendida também como uma outra homenagem: a Maria Elisa Marques, viúva do artista, zeladora incansável da sua memória e obra que, generosamente, doou ao Museu do Chiado um acervo valiosíssimo de desenhos, sobretudo de Bernardo mas não só. Esta mulher, bela e de uma elegância como, definitivamente, hoje já não existe, é para todos os amigos que conviveram e trabalharam com o artista, a presença como vida do próprio Bernardo, esse outro imenso sedutor. E, o que é muito raro, ela tem sabido também enredar, num amor partilhado, gente mais nova que não conheceu o desenhador mas que, através das suas memórias, reflecte sobre a obra e as suas sucessivas temporalidades com um lastro de afectividade que, em princípio, só o contacto directo asseguraria: assim acontece com Maria Helena de Freitas que organizou, em 1989, no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, a mais importante exposição e catálogo monográficos sobre o artista, e com Marina Bairrão Ruivo, comissária desta mostra, que lhe dedicou a sua dissertação de Mestrado em História da Arte, em 1990. Quanto a mim, que só escrevi generalidades sobre o Bernardo em algumas obras gerais aproveitando o trabalho de investigação dos seus principais historiadores - além, ou melhor antes das citadas, evidentemente José-Augusto França que foi mestre de uma e outra (e também meu), Fernando Azevedo e Rui Mário Gonçalves - nunca consigo separar o gosto de abordar a obra do artista da evocação da Lisboa dos anos 40 e 50 que a Maria Elisa me permite visualizar, com humor e amor, ou seja, com distância crítica mas também íntima adesão, revelando rara qualidade de nostalgia onde a acutilância é ferrete cúmplice de conhecimento .
A figura da dupla homenagem, que foi a razão de ser desta exposiçao, explica os seus aparentes limites: à excepção do estudo de Rui Afonso Santos - sintetizando e problematizando a obra do Bernardo Marques decorador - não há avanços nem novidades sobre o artista porque toda a investigação sobre ele está feita e divulgada. Por isso se republicam alguns textos fundamentais: o de Fernando Azevedo e o de Maria Helena de Freitas - que valorizam, no conjunto da produção bernardiana, a importância e a qualidade do longo ciclo paisagístico final - e a conferência desse outro grande amigo de Bernardo, David Mourão-Ferreira, sobre Bernardo ilustrador de obras literárias. Os textos de síntese, evocador de muitos escritos anteriores, o de José-Augusto França, rigorosamente historiográfico e crítico, o de Marina Bairrão Ruivo, contextualizam e destacam a particularidade artística dos vários Bernardes, no quadro do modernismo português de que ele foi figura cimeira nos anos 20 a 40 e cujos valores mais significantes soube depois transmutar, num paisagismo poético e subtilíssimo, sem necessidade nem de contexto nem de História: plena obra pessoal, quase secreta, onde a liberdade do traço inventa os sítios, urbanos ou campestres, como gesto plástico que do visto colhe a sugestão mas realmente só se empenha na sua transfiguração, ao mesmo tempo sensual e descarnada.Creio, no entanto, que embora sem novidades, esta exposição tem ainda importância em si mesma. Em primeiro lugar porque permite ao público em geral rever - e, com certeza, em muitos casos ver pela primeira vez - uma selecção muito cuidada do melhor de Bernardo Marques que, pertencendo maioritariamente a colecções museais (sobretudo ao Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian), nunca está em exposição permanente, quer pela sua fragilidade física, quer pela infelizmente continuada escassez de museus de arte moderna em Portugal. Deste ponto de vista, é a obra mesma que interessa valorizar: no seu empenho de civilizar a Lisboa dos anos 20, através do desenho moderno de caricatura e de ilustração que nasceram nos salões dos humoristas da década anterior; na marca expressionista do início dos anos 30, em consonância com a estética da Presença e do 1º Salão dos Independentes, e sem dúvida devedora da estadia na Alemanha em 1929; no contributo incontornável para a qualidade das múltiplas iniciativas do Secretariado de Propaganda Nacional de António Ferro, nos anos 30 e 40, muitas vezes em trabalho de equipa com Fred Kradolfer, Carlos Botelho, José Rocha e Paulo Ferreira; finalmente, e como já foi destacado, na evolução pessoalíssima do seu traço que, sobretudo nos anos finais, abandona o registo da crónica e a celebração dos sítios através do casticismo das gentes, para se concentrar numa indagação plástica sobre a essência do paisagismo .
Mas existe uma segunda razão que torna importante esta exposição: a multiplicidade de registos de Bernardo, que muito genericamente se acabaram de evocar, situa-nos na própria complexidade do modernismo português que, definitivamente, não se esgota nem na ilustração à parisiense dos anos 20, nem, muito menos, na apropriação casticista e nacionalista que dele foi feita pelo "política de espírito" de António Ferro, nos anos em que o Estado Novo teve um dinamismo cultural significativo. Obriga-nos também a ter presente que o "esquema das décadas", proposto por José-Augusto França para tratar produtivamente a arte portuguesa do século XX e depois talvez excessivamente apropriado por todos os seus discípulos, deve ser confrontado com os percursos artísticos concretos que sempre o extravasam. No caso que estamos a analisar, sendo verdade que Bernardo pertence às especificidades da geração de 20, e à de 30, e à de 40 pelo lado da estética oficial, é também verdade - e mais produtiva - que ele está nelas com uma distância, irónica e bastante atormentada, e que essa distância lhe permitiu autonomizar-se nos anos 50, quando o moder nismo se encerrava e eclodiam novas problemáticas plásticas. E, se esta evolução pessoal não lhe deu lugar na cena artística contemporânea, tal aconteceu também por que a época era de inevitáveis e excessivos confrontos e Bernardo iniciara um percurso de imensa solidão de que a morte voluntária foi o desfecho em 1962. Mas, à distância de tanto tempo passado, surge evidente que, como Almada afirmou em 1966 e Marina Bairrão Ruivo recorda neste catálogo, a sua obra era "muito melhor " do que ele, e outros, haviam pensado, nos anos em que se tinha da modernidade conceitos muito conjunturalmente unívocos.
Por isso, e regressando ao repto das homenagens cruzadas, que teceram esta exposição, ela homenageia também, através de Bernardo Marques, todos os mais interessantes artistas da sua geração que, de modos diferentes, participaram intensa e comprometidamente no tempo difícil da cultura portuguesa da primeira metade do século mas dela mantiveram a distância de brecha indispensável à realização do seu próprio percurso plástico.
Um agradecimento final: tendo deixado de ser directora do Museu do Chiado em Outubro de 1997, quando a exposição estava completamente por concretizar, foi o empenho e a amizade da excepcional equipa do Museu do Chiado, dirigida por Pedro Lapa, que tornou possível a sua realização. Por isso, tenho de agradecer a todos - além do Pedro Lapa, à Maria d' Aires Silveira, à Maria Jesús Ávila e ao Rui Afonso Santos -, aproveitando também para assegurar ao público e a tantos amigos do Museu do Chiado que, encerrado o ciclo das exposições temporárias programadas sob a minha direcção, aquela equipa continuará a fazer mais e melhor.
Raquel Henriques da Silva
Directora do Instituto Português de Museus