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Bernardo Marques

Bernardo Marques

1998-10-24
1999-01-17
Curadoria: Marina Bairrão Ruivo
HOMENAGENS CRUZADAS


ESTA exposição dedicada a Bernardo Marques foi pensada há cerca de três anos como uma homenagem, aproveitando para isso a data simbólica do centenário do seu nascimento. Mas, para mim, que assumi, enquanto directora que era então do Museu do Chiado, a responsabilidade de a rea­lizar, ela foi sempre entendida também como uma outra homenagem: a Maria Elisa Marques, viúva do artista, zeladora incansável da sua memória e obra que, generosamente, doou ao Museu do Chiado um acervo valiosís­simo de desenhos, sobretudo de Bernardo mas não só. Esta mulher, bela e de uma elegância como, definitivamente, hoje já não existe, é para todos os amigos que conviveram e trabalharam com o artista, a presença como­ vida do próprio Bernardo, esse outro imenso sedutor. E, o que é muito raro, ela tem sabido também enredar, num amor partilhado, gente mais nova que não conheceu o desenhador mas que, através das suas memórias, reflecte sobre a obra e as suas sucessivas temporalidades com um lastro de afectividade que, em princípio, só o contacto directo asseguraria: assim acontece com Maria Helena de Freitas que organizou, em 1989, no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, a mais impor­tante exposição e catálogo monográficos sobre o artista, e com Marina Bairrão Ruivo, comissária desta mostra, que lhe dedicou a sua dissertação de Mestrado em História da Arte, em 1990. Quanto a mim, que só escrevi generalidades sobre o Bernardo em algumas obras gerais aproveitando o trabalho de investigação dos seus principais historiadores - além, ou melhor antes das citadas, evidentemente José-Augusto França que foi mestre de uma e outra (e também meu), Fernando Azevedo e Rui Mário Gonçalves - nunca consigo separar o gosto de abordar a obra do artista da evocação da Lisboa dos anos 40 e 50 que a Maria Elisa me permite visuali­zar, com humor e amor, ou seja, com distância crítica mas também íntima adesão, revelando rara qualidade de nostalgia onde a acutilância é ferrete cúmplice de conhecimento .
A figura da dupla homenagem, que foi a razão de ser desta exposiçao, explica os seus aparentes limites: à excepção do estudo de Rui Afonso Santos - sintetizando e problematizando a obra do Bernardo Marques decorador - não há avanços nem novidades sobre o artista porque toda a investigação sobre ele está feita e divulgada. Por isso se  republicam alguns textos fundamentais: o de Fernando Azevedo e o de Maria Helena de Freitas - que valorizam, no conjunto da produção bernardiana, a impor­tância e a qualidade do longo ciclo paisagístico final - e a conferência desse outro grande amigo de Bernardo, David Mourão-Ferreira, sobre Bernardo ilustrador de obras literárias. Os textos de síntese, evocador de muitos escritos anteriores, o de José-Augusto França, rigorosamente his­toriográfico e crítico, o de Marina Bairrão Ruivo, contextualizam e destacam a particularidade artística dos vários Bernardes, no quadro do moder­nismo português de que ele foi figura cimeira nos anos 20 a 40 e cujos valo­res mais significantes soube depois transmutar, num paisagismo poético e subtilíssimo, sem necessidade nem de contexto nem de História: plena obra pessoal, quase secreta, onde a liberdade do traço inventa os sítios, urbanos ou campestres, como gesto plástico que do visto colhe a sugestão mas  realmente  só se empenha  na  sua transfiguração,  ao mesmo  tempo sensual e descarnada.
Creio, no entanto, que embora sem novidades, esta exposição tem ainda importância em si mesma. Em primeiro lugar porque permite ao público em geral rever - e, com certeza, em muitos casos ver pela primeira vez - uma selecção muito cuidada do melhor de Bernardo Marques que, perten­cendo maioritariamente a colecções museais (sobretudo ao Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian), nunca está em exposição permanente, quer pela sua fragilidade física, quer pela infelizmente conti­nuada escassez de museus de arte moderna em Portugal. Deste ponto de vista, é a obra mesma que interessa valorizar: no seu empenho de civilizar a Lisboa dos anos 20, através do desenho moderno de caricatura e de ilus­tração que nasceram nos salões dos humoristas da década anterior; na marca expressionista do início dos anos 30, em consonância com a estéti­ca da Presença e do 1º Salão dos Independentes, e sem dúvida devedora da estadia na Alemanha em 1929; no contributo incontornável para a quali­dade das múltiplas iniciativas do Secretariado de Propaganda Nacional de António Ferro, nos anos 30 e 40, muitas vezes em trabalho de equipa com Fred Kradolfer, Carlos Botelho, José Rocha e Paulo Ferreira; finalmente, e como já foi destacado, na evolução pessoalíssima do seu traço que, sobre­tudo nos anos finais, abandona o registo da crónica e a celebração dos sítios através do casticismo das gentes, para se concentrar numa indaga­ção plástica sobre a essência do paisagismo .
Mas existe uma segunda razão que torna importante esta exposição: a multiplicidade de registos de Bernardo, que muito genericamente se acabaram de evocar, situa-nos na própria complexidade do modernismo português que, definitivamente, não se esgota nem na ilustração à parisiense dos anos 20, nem, muito menos, na apropriação casticista e nacio­nalista que dele foi feita pelo "política de espírito" de António Ferro, nos anos em que o Estado Novo teve um dinamismo cultural significativo. Obriga-nos também a ter presente que o "esquema das décadas", proposto por José-Augusto França para tratar produtivamente a arte portuguesa do século XX e depois talvez excessivamente apropriado por todos os seus discípulos, deve ser confrontado com os percursos artísticos concretos que sempre o extravasam. No caso que estamos a analisar,  sendo verdade que Bernardo pertence às especificidades da geração de 20, e à de 30, e à de 40 pelo lado da estética oficial, é também verdade - e mais produtiva  - que ele está nelas com uma distância, irónica e bastante atormentada, e que essa distância lhe permitiu autonomizar-se nos anos 50, quando o moder ­nismo se encerrava e eclodiam novas problemáticas plásticas. E, se esta evolução pessoal não lhe deu lugar na cena artística contemporânea, tal aconteceu também por que a época era de inevitáveis e excessivos con­frontos e Bernardo iniciara um percurso de imensa solidão de que a morte voluntária foi o desfecho em 1962. Mas, à distância de tanto tempo pas­sado, surge evidente que, como Almada afirmou em 1966 e Marina Bairrão Ruivo recorda neste catálogo, a sua obra era "muito melhor " do que ele, e outros, haviam pensado, nos anos em que se tinha da  modernidade con­ceitos muito conjunturalmente  unívocos.
Por isso, e regressando ao repto das homenagens cruzadas, que teceram esta exposição, ela homenageia também, através de Bernardo Marques, todos os mais interessantes artistas da sua geração que, de modos dife­rentes, participaram intensa e comprometidamente no tempo difícil da cultura portuguesa da primeira metade do século mas dela mantiveram a distância de brecha indispensável à realização do seu próprio percurso plástico.
Um agradecimento final: tendo deixado de ser directora do Museu do Chiado em Outubro de 1997, quando a exposição estava completamente por concretizar, foi o empenho e a amizade da excepcional equipa do Museu do Chiado, dirigida por Pedro Lapa, que tornou possível a sua reali­zação. Por isso, tenho de agradecer a todos - além do Pedro Lapa, à Maria d' Aires Silveira, à Maria Jesús Ávila e ao Rui Afonso Santos -, aproveitando também para assegurar ao público e a tantos amigos do Museu do Chiado que, encerrado o ciclo das exposições temporárias  programadas sob a minha direcção, aquela equipa continuará a fazer mais e melhor.


Raquel Henriques da Silva
Directora do Instituto Português de Museus