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O Fardo das Imagens (1945-1953)

Adelino Lyon de Castro

2011-04-07
2011-06-19
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Info

“Ao não instruído é tão difícil ler uma imagem como qualquer hieróglifo”, afirmava Ruth Berlau, colaboradora próxima de Bertolt Brecht, em nota no álbum ilustrado daquele autor, ABC da Guerra (1955). Ensinar a ler as imagens fazia parte de todo um programa de transformação social em que a cultura era essencial, em que a consciência do poder manipulatório e enganador das imagens podia ser convertido numa alfabetização sobre todo o complexo de exploração e dominação do sistema social e político. Este aspecto é fulcral para a análise e leitura da obra fotográfica de Adelino Lyon de Castro, sobretudo, quando o cruzamos com as históricas discussões que o movimento neo-realista teve para elaborar uma estética que fosse acessível ao povo ignorante. Colocar os trabalhadores e os excluídos como tema principal em todas as formas de expressão artística não fazia por si só a revolução, era necessário operar todo um processo de consciência da desigualdade social que só assim podia tornar verdadeiras e legíveis as “penas e fadigas do labor”. É por isso significativo que nas imagens de Lyon de Castro exista esse permanente foco nos corpos que cedem perante o “oscilar sob uma carga”, no sentido desse estado de pobreza que se torna abjecta porque “coloca os homens sob o absoluto ditado dos seus corpos, isto é, sob o absoluto ditado da necessidade”(Hannah Arendt). O movimento neo-realista português assimilou de forma esparsa, superficial e insuficiente a capacidade de representação do real da fotografia. Dedicou-lhe alguma atenção pelo pensamento de Mário Dionísio que viu nela uma forma de actuação, interpretação e transformação da realidade, podendo assim defender até a sua feição mais naturalista, na esteira de Henri Lefebvre e do seu “romantismo revolucionário”. As fotografias de Lyon de Castro realizam, assim, esse incessante e híbrido destino de representação da realidade, ao mesmo tempo que reafirmam: “não existe realismo crítico sem crítica prévia ao realismo”. (Georges Didi-Huberman).

Emília Tavares


A obra fotográfica de Adelino Lyon de Castro, pelo seu carácter de representação social e realista da sociedade, invoca também uma reflexão essencial sobre o papel da fotografia e da sua repercussão na representação do real e da sua relação com a verdade. A fotografia estabeleceu com a representação da realidade novos compromissos, dada a sua natureza ontológica de reprodução mimética da mesma, logo, detentora de valores e índices de “verdade”, impossíveis a qualquer outra forma de expressão artística. Assim, nesta sintética e prolixa apresentação de obras equacionam-se alguns dos limites, possibilidades e paradoxos de representação do real e das contingências estéticas, mas também ideológicas, a que a arte e a fotografia, em particular, têm tido de corresponder. Por um lado, a inclusão dos anónimos e desfavorecidos nos temas da arte, desde o século XIX, corresponde a um primado do realismo a que os ecos das revoluções sociais vieram dar corpo ideológico, mas que se esvaziariam na voracidade do consumo burguês pelo exótico. Por seu turno, a politização de alguns dos principais movimentos artísticos, como o Neo-Realismo, trouxe novas problemáticas, como a forma estética mais eficaz de representar a realidade, mas também de divulgar e formar consciência social através da arte. Entre os mendigos encenados de Carlos Relvas e a tipificação pitoresca dos camponeses por parte do Estado Novo, estabelece-se uma forma de representação que retira ao indivíduo a sua espessura para o enquadrar em arquétipos sociais, adequadamente generalistas que o reduzem a uma imagem global, tal como uma marca. O Modernismo português viveu também sempre em resolução, entre a realidade nada harmoniosa de Mário Eloy ou a realidade composta de Abel Salazar, hibridismo que a fotografia chamou a si, quando a resolveu sob o vasto olhar entre um realismo poético e um naturalismo revolucionário. Em qualquer dos casos, a fotografia portuguesa soube, no seu contexto “fronteiriço”, ir dando expressão ao “fardo” ideológico da imagem. Ainda que prevaleça a questão, sendo “a realidade dita social dupla, múltipla e plural. De que maneira assegura ela uma realidade?” (Henri Lefebvre), a que a imagem possa conferir representação.

Emília Tavares