entrada: Condições Gerais

Objectos de errância

Marta Wengorovius

2011-05-05
2011-06-19
Voltar ao Programa

Libação

Pergunta: Como se transforma uma das actividades mais íntimas, subjectivas e idiossincráticas das práticas artísticas numa actividade social e porquê?

O desenho é uma actividade que possui um peculiar estatuto no interior das práticas artísticas, mas que, na sua enorme multiplicidade, passa para lá do âmbito do artístico sendo uma prática social de grande amplitude: quando falamos de desenho incluímos os desenhos preparatórios de artistas, os desenhos de projecto, o desenho encarado como médium específico, os esquiços de arquitecto, os doodles de canto de página, as páginas de cadernos escolares cheias de reproduções de heróis de Manga, as indicações de direcção que garatujamos ou que nos dão para decifrarmos numa visita a amigos remotos, os resumos de conteúdos de reuniões, os organogramas, o mindmapping com que tentamos orientar as nossas escolhas futuras, a escrita manual, enfim, toda a actividade inscritora e descritora de processos de pensamento a partir de formas gráficas.

O desenho, na teia da sua diversidade, não é, portanto, um médium artístico. É uma prática que estabelece diferentes instâncias de desempenho, de performatividade.

Uma parte importante dessa performatividade reporta-se a situações comunicantes, como são os casos das indicações de direcção, dos mapas, dos desenhos técnicos, dos desenhos científicos, etc.

Assim, o desenho não é uma actividade não-mediada oriunda da radical subjectividade do artista, ou uma mera performatividade estilística, mas uma prática social de inscrição que se desenvolve a partir de protocolos de reconhecimento.

O desenho cívico de Marta Wengorovius é o desenvolvimento desta acepção do desenho, transformando-o numa realização colectiva de partilha da experiência gráfica comunicante do desenho.

Pergunta: uma homenagem a Nuno Teotónio Pereira porquê?

A prática colectiva que Marta Wengorovius propõe parte da realização colectiva e voluntária de uma tarefa conducente a um desenho inscrito na cidade, na rua.

É uma actividade que parte de um mapa de actividades prévio, isto é, de um projecto, que se prolonga na realização de escantilhões que são colocados no chão e que servem de baliza para uma actividade de limpeza, operada como uma tarefa de grupo. Isto é, Marta Wengorovius converte o desenho numa actividade colectiva que opera aquilo a que poderíamos chamar uma libação matinal da cidade, com todo o eco ritual e de oferenda que o termo possui.

Como processo de purificação, ele deve, ou pode, ser oferecido. Oferece-o a um arquitecto que desenvolveu todo o seu percurso pautado por uma prática cívica do desenho arquitectónico, que sempre tem encarado a prática arquitectónica como uma possibilidade ética de construção de melhores condições de cidadania. Ou seja, que, ele próprio, tomou a arquitectura como uma dádiva.

Pergunta: Existe uma componente política neste projecto?

A relação entre a prática colectiva do desenho tomada como dádiva e a construção de uma possibilidade politica de entender a prática artística situa-se ao nível do estabelecimento de um plano sensível de partilha.

Na produção conjunta do projecto de um desenho, na sua dimensão de ritual e celebração, existe uma possibilidade de constituição de uma comunidade que existe exclusivamente fundada na vontade da sua constituição colectiva.

Essa comunidade é frágil e performativa.

A sua poética é a da partilha.

 Delfim Sardo

Abril de 2011