Álvaro Lapa - O caderno de Henry Miller. Coleção Mário Soares
Álvaro Lapa - O caderno de Henry Miller. Coleção Mário Soares

MNAC

entrada: Condições Gerais

Colecção Mário Soares

1996-02-22
1996-04-21
Curadoria: Raquel Henriques da Silva


Mário Soares - A Dimensão Cultural do Homem Político


Ao lado das grandes colecções dos museus públicos, cujas peças fazem já parte de um património que todos conhecemos, e sobre as quais vamos desvendando os últimos segredos, um território permanecia ainda intacto, furtando-se ao nosso olhar, mas igualmente pleno de interesse e de histórias para contar. Refiro-me, evidentemente, às colecções privadas, esse mundo secreto onde se acumulam insuspeitadas obras de arte, bem como inúmeros vestígios de paixões obsessivas, representando muitas vezes anos e anos de uma procura interminável e de uma intensa aplicação de conhecimentos, de curiosidade e de "amadorismo", no sentido mais nobre do termo. Sempre tive a intuição do extraordinário suplemento de informação e de saber que as colecções privadas podiam trazer aos fragmentários acervos dos nossos museus, ao mesmo tempo que podiam constituir um pretexto único para conhecer gostos e tendências do coleccionismo contemporâneo, quando não revelar, com um indesmentível voyeurismo, a actividade mais privada de alguns dos vultos da nossa cultura. Este objectivo, que parecia difícil à partida, trouxe afinal mais frutos do que alguma vez julguei possível. Foi isso, justamente, que lembrei ao Senhor Presidente durante a visita inaugural ao renovado Museu do Chiado, conversa que não só reatou um contacto permanente desde que assumi funções de direcção no Palácio Nacional de Queluz, como foi, por outro lado, a primeira de muitas outras que mantivemos para estabelecer as opções de conteúdo da exposição, os textos a editar ou as circunstâncias de formação desta importante colecção.
Não posso deixar de evocar, nesta oportunidade, o fortalecimento de uma amizade sedimentada ao longo de vinte anos de contacto regular em Queluz. Condicionados pelas imposições protocolares, os difíceis compassos de espera, os tempos-mortos, transformavam-se magicamente em momentos de animada conversa sobre os temas caros a Mário Soares, os da cultura e arte portuguesas. Descobríamos assim afinidades múltiplas, construindo uma cumplicidade feita destes interesses comuns.
Relembro hoje, mais do que nunca, um passeio com Mário Soares e François Mitterrand nos intimistas jardins de Queluz, quando a conversa derivou mais uma vez para as nossas afinidades electivas: o gosto do Presidente da República era, de facto, genuíno, e a isso acrescia uma clara faculdade de julgar e uma voluntariosa opinião sobre a arte moderna portuguesa.
Nem podia ser de outro modo. Todos conhecemos o percurso de Mário Soares, os estímulos de uma vida pessoal e familiar de convivência diária com o escol da intelectualidade nacional e as vicissitudes de uma carreira política singular. É esta coerência de pensamento e acção que contaminou integralmente a colecção. Não se trata aqui, na verdade, de proporcionar mais uma visão do nosso século XX, um pot-pourri de obras e de nomes que constituísse apenas uma mostra, entre tantas possíveis, desta evolução recente. Também não está em causa a apresentação majestática da colecção do Presidente da República, pretexto, por si só, insuficiente para as expectativas geradas em torno desta iniciativa. As razões são bem outras, e diversas. Através do acervo agora reunido é toda a história de uma geração, brilhante, de artistas e poetas, de escultores, arquitectos, de músicos e escritores que revisitamos. É uma história forjada na resistência, em aventuras épicas e trágicas, na afirmação de valores de justiça e liberdade. Ora, tanto quanto os discursos plásticos podem ser expressão de determinados contextos, sem cair em mecanicismos simplistas, esta colecção é bem a imagem de uma época: reconhece, antes do mais, o valor pregnante da modernidade; assume urna medida distância em relação à arte académica e às suas manifestações mais conformistas; está atenta à mudança de paradigmas plásticos; separa, para cada período, o relevante e o acessório; identifica a actualidade do neo-realismo e o seu esgotamento, a dimensão onírica do surrealismo, o irromper do abstraccionismo e das novas figurações.
Em relação a outras colecções afins, a de Mário Soares adquire uma indesmentível originalidade. Vejamos o caso de Manuel Teixeira Gomes, também Presidente e coleccionador, figura sempre lembrada e admirada. Escritor ímpar do seu Algarve natal, intensamente marcado pela visão luminosa e apolínea daquelas terras solares, foi também um decadentista requintado, aliás mal compreendido no seu tempo. Como coleccionador que foi, abundam porém os indícios de um gosto conformado e imobilizado nas propostas mais comuns de um gosto corrente que não quis, ou não soube, contrariar.
É curioso, também, surpreender nas entrelinhas o movimento do coleccionador, os processos de enamoramento e rejeição, de fruição, a própria geografia de distribuição das obras pelo espaço da casa. O caso de Paula Rego é exemplar. Confessando uma desconfiança original em relação ao mundo fantasmático da pintora emigrada, ao mesmo tempo que introduzia a nota da solidariedade desperta de Maria Barroso, Mário Soares conseguiu mais tarde aproximar-se do quadro de Paula Rego, um indício perfeito de ausência de preconceitos e de capacidade de adaptação a novas estéticas. O papel de Maria Barroso afigura-se, aliás, essencial nesta estratégia de escolhas, introduzindo no gosto clássico de Mário Soares uma surpreendente audácia e o equilíbrio necessário para tornar representativa a colecção.
Num país que vive tão centrado nas suas glórias passadas, onde à arte contemporânea falta ainda o encorajamento devido a uma das expressões mais ricas e prometedoras da cultura portuguesa, não é dispiciendo que caiba ao Presidente da República um boa quota-parte de animação de urna área ainda insegura. Assumindo o alcance do seu exemplo, Mário Soares promoveu um interessante programa de exposições no Palácio de Belém, merecendo ser aqui recordada, nomeadamente, uma recente mostra de caricaturas, reflexo até de atenção a expressões criativas relativamente marginais.
Algumas colecções têm ultimamente sido formadas, mas ao Estado falta dar um passo determinante de apoio e encorajamento à produção plástica do nosso tempo. Lembro aqui que há muito lancei a ideia de transformar as nossas embaixadas em centros divulgadores da criação contemporânea, substituindo as obras de arte dos museus, tão frágeis, por peças à procura de maior visibilidade. Esta ideia, oportunamente exposta a Mário Soares, que a subscreveu por inteiro, não a podemos concretizar, mas é estimulante saber da receptividade de urna figura política de primeiríssimo plano à contemporaneidade e à problemática cultural.
Não surpreende portanto, neste contexto, a decisão de apresentar a colecção de Maria Barroso e Mário Soares no espaço do Museu do Chiado. O grande público terá, assim, oportunidade de acrescer à dimensão pública do Homem de Estado, já sobejamente conhecida, a dimensão privada do homem de gosto e do amante de arte, ao mesmo tempo que deparará com a panorâmica de um século da produção plástica portuguesa.

Simonetta Luz Afonso