Picasso no Museu do Chiado
Raquel Henriques da Silva
Vinte e quatro anos depois da morte de uma das figuras axiais da arte internacional do século XX, e 116 após o seu nascimento, pela primeira vez a sua pintura é objecto de uma exposição em Portugal, situação que creio inédita em relação a qualquer outro país europeu. Este facto traduz imediatamente a consabida distância da cultura artística portuguesa em relação aos grandes, médios e pequenos centros da elaboração da modernidade : ao contrário de todo eles, não tivemos nem política cultural, nem coleccionadores, nem museus e a consequência foi uma falha traumática que impediu gerações sucessivas de artistas e amadores do contacto directo com uma das mais impressivas revoluções do imaginário do século, consubstanciada no que vulgarmente se designa como arte moderna e que, evidentemente, não é devida só a Picasso mas a um conjunto de personalidades fundadoras, tingidas da mesma invisibilidade nacional.
Como sempre acontece, em qualquer domínio da História, a não vivência das suas diversas conjunturas não é mecanicamente transferível para os tempos seguintes. Por isso, não sendo possível corrigir uma centúria de resistência atávica à contemporaneidade, ela só interessa como consciência do não acontecido, mais ou menos contextualizável ou justificada, sobretudo, como sólida base decisória para finalmente romper com a teia da marginalidade auto-complacente. Existem, hoje, em diversas cenas da prática artística portuguesa, sinais optimistas de uma viragem produtiva e é nela que se inscreve a exposição que agora se apresenta.
Mas se a negatividade do passado não serve de argumento ao presente, importa atentar que as grandes exposições mundiais que, todos os anos, animam a vida cultural das cidades europeias - e não só das capitais - não se conquistam de repente, sem obras próprias para nelas integrar e sem possibilidade de se assumirem compromissos a longo prazo, sempre tremendamente onerosos em termos financeiros. Por isso, a atitude não é - não deve ser - mostrar tudo o que não vimos durante um século mas seleccionar, com indispensável pragmatismo, o que podemos fazer, sem comprometer, no caso dos museus, outras inadiáveis tarefas. Foi este posicionamento prudente - nem nem festivo nem fatalista - que esteve na origem de um projecto, nascido casualmente há dois anos. Vale a pena evocá-lo.
Por contacto inicial de Eduardo Prado Coelho, então Adido Cultural português em Paris. o Instituto Português de Museus e o Museu do Chiado co-produziram, em 1995, a exposição Marino Marini com o Museu Réattu de Arles comissariada da pela sua conservadora Michèle Moutashar. Com esta iniciativa pretendia-se iniciar uma linha desejável de colaborações internacionais na arte contemporânea, prevista para o Museu do Chiado desde o início da sua actividade.
Durante a preparação dessa exposição, em visita a Arles e ao seu belo Museu Réattu, a então directora do IPM, Simonetta Luz Afonso, e eu própria fomos atraídas pela sala dos desenhos de Picasso, para nós completamente inéditos, comoventes pela energia do traço, a diversidade da sua resolução técnica e a extrema unidade estilística do último período do genial pintor. Mais tarde, Jean-Maurice Roquette, que ainda desempenhava o cargo de Director dos Museus de Arles, contou-nos a história da entrada dessas 57 obras no Museu Réattu: elas haviam sido escolhidas pelo próprio Picasso que, em Maio de 1971, dois anos antes de falecer, quis homenagear o seu amor pela cidade de Arles, frequentada desde 1912, em pleno período clubista - como testemunham varias Arlésiennes, memoriais também a Van Gogh que aí vivera . E se consolidara ao longo de numerosas visitas, muitas vezes para assistir às touradas, realizadas no anfiteatro romano. Logo ali, manifestamos o desejo de, proximamente, poder mostrar aqueles desenhos no Museu do Chiado, dando continuidade a uma colaboração que se delineava frutuosa e adequada, considerando a dimensão física modesta dos dois museus.
Este projecto foi amadurecendo e Michèle Moutashar acabou por nos propor uma exposição que, tendo como núcleo significante, parte da colecção dos desenhos picassianos de Arles, não se esgotava neles mas elegia de imediato o tema do Mosqueteiro, determinado, poder-se-á dizer pelo proprio artista. De facto, era essa figura versátil, imediatamente identificada pelo chapéu e o bigode cavaleirescos, que sobressaia da selecção por ele feita, como se fossse uma espécie de auto-retrato insistente e diferido, plasmado pela revisitação de Rembrandt, Velasquez (ou da Silva, como Picasso o designa no Mosqueteiro do Museu de Budapeste) e El Greco, pintores que Picasso longamente prosseguiu na sua programática, tão séria como irreverente, de refazer a arte europeia da idade de ouro do império espanhol.
Partindo pois da série mais expressiva e unitária do núcleo de obras do Museu Réattu - balizado pelas datas de 31 de Dezembro de 1970 e 4 de Fevereiro de 1971 - Michele Moutashar decidiu contextualizá-la, na produção pictórica e na gravura, para provar que o tema do Mosqueteiro constitui um dos motivos maiores do Picasso final onde 80 anos de pasmosa e ininterrupta criatividade se concentram e eclodem, simultaneamente como liberdade e assumpção de destino auto-construído. Creio que, na extensa bibliografia do pintor, é a primeira vez que tal é feito e este facto será o mérito maior desta exposição que, positivamente, torneou a impossibilidade que haveria, para um pequeno Museu como é o do Chiado, de apresentar as obras ou os períodos mais consagrados do artista.
Na verdade, não vale a pena iludir a extrema dificuldade de um museu, que não possui obras de reconhecimento internacional e se situa num espaço periférico em relação aos grandes e pequenos centros da prática artística europeia, de organizar uma exposição Picasso. No contexto da herança histórica, delineada no início deste texto, esta exposição não se propõe preencher a figura do pintor, o que só poderia acontecer com uma retrospectiva histórica, cuja importância, ou urgência, não é discutível - como, aliás, a de outros percursos inventores da modernidade - mas cuja responsabilidade terá de ser assumida por instituições com um perfil mais adequado do que o do actual Museu do Chiado.
E se não foi naturalmente possível obter todas as obras que a comissária da exposição gostaria de apresentar, este projecto contou com a simpatia e a disponibilidade de prestigiados museus, galerias e coleccionadores, receptivos pela situação de em Lisboa nunca se ter realizado uma exposição de pintura Picasso que, pelo esplendor da obra e a intensa aura de personagem, e, ainda hoje, uma espécie de símbolo familiar do espírito fundador da vivência e dos valores novecentistas. Além do grande profissionalismo e sensibilidade de Michele Moutashar, contámos também com o mecenato generos do Banco Mello, Mecenas institucional do Museu do Chiado desde 1995, da Bolsa de Lisboa, da TMN e das companhias de
.1seguros Lusitânia, Tranquilidade, Império e Mundial Confiança. A todos agradeço, bem como a colaboração inexcedível do Instituto Português de Museus que nos apoiou na produção complexa desta exposição, na sua montagem e realização do catálogo, particularmente a Dra. Mana Antonia Pinto de Matos que viabilizou este projecto.
Foi esta vasta equipa de trabalho e boas-vontades, que nos permite celebrar o 116º aniversário de Picasso, evocando-o no esplendor os anos finais, através de um dos auto-retratos com que se identificou com a pintura. No Mosqueteiro, a espada torna-se cachimbo, o cachimbo é sempre o pincel e o chapéu, o fato e o bigode de cavaleiro seiscentista constituem a metáfora poderosa das memórias museais com que ele contestou e renovou os próprios conceitos de obra e de museu .Sobre o pano de fundo da mítica figura da espanholidade que lhe foi sempre raivoso e apaixonado chão.
MNAC
entrada: Condições GeraisPicasso e o Mosqueteiro 1967-1972
1996-10-28
1997-02-01
Curadoria: Michèle Moutashar
Em Exibição
TRANSGRESSÕES
2024-11-22
2025-01-15
Curadoria: Rui Afonso Santos
Oito painéis impressos apresentam a imagem manipulada de peças do acervo de escultura do Museu Nacional de Arte Contemporânea, fundado precocemente em 1911, no quadro mental renovador da jovem Primeira República portuguesa.
Biografia do traço. Desenhos da colecção MNAC - 1836//2024
2024-10-25
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O Desenho – a disciplina mais próxima da ideia – é um eixo pedagógico central ao treino da mão e da visão.
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