Susanne Themlitz, o inventor Crazybrains e a sua nave espacial, 1999
Susanne Themlitz, o inventor Crazybrains e a sua nave espacial, 1999

MNAC

entrada: Condições Gerais

Quiproquo a partir das viagens maravilhosas de Georges Méliés

Susanne Themlitz

1999-07-08
1999-09-26
Curadoria: Pedro Lapa
PRESTIDIGITAÇÕES
Pedro Lapa


No início do século XX o cinema de Méliès introduziu o imaginário como dimensão fulcral da inguagem cinematográfica, substituindo assim a dominante naturalista que informava os planos dos Lumière. À reportagem de cenas da vida quotidiana, registadas por uma câmara fixa e tão objectiva quanto a tecnologia o permitia, sucedia-se uma ruptura que desenvolvia as possibilidades fantásticas de uma nova linguagem e aproximava o cinema da sua dimensão espectacular e teatral. As possibilidades de uma nova tecnologia, ainda que fizessem uso de uma retórica teatral a que a mise-en-scene estava subordinada, eram exploradas de forma a produzir um imaginário específico. O artefacto não estava ainda condicionado ao piscar de olho que um uso sempre supõe ou seja, à sua codificação dentro de um sistema, gerando assim um dispositivo retórico. Aquele era o irrompimento do estranho que trazia consigo a sobreposição de uma outra dimensão da realidade, puramente imaginária, mas que àquela se colava sob a forma mais objectiva que a realidade fotográfica e cinematográfica significavam na época. O truque, o efeito, o artefacto ou a diversidade de aspectos técnicos, que viriam a configurar a linguagem cinematográfica, eram o aparecimento de uma outra abordagem do real que na sua objectividade revelava a simultânea familiaridade e estranheza de uma dimensão fantasmática.
É sobretudo este aspecto que as fotomontagens de Susanne Themlitz isolam e reinscrevem num outro tempo - o nosso - com isso abrindo campo a uma revisão crítica que, por um lado, devolve ao seu contexto inicial - a filmografia de Méliès - uma distância que possibilita a articulação directa com os seus antecedentes, como seja o caso do Simbolismo de Gustave Moreau  ou de Odillon Redon; por outro, aproxima-as da colagem surrealista e do acaso objectivo. Todas estas distintas realidades históricas, que a releitura do trabalho de Mélies feita através destas fotomontagens permite aproximar, não se esgota numa indiferenciação gerada por um mecanismo ou dispositivo retórico, mas é sobretudo a possibilidade de circunscrever o aparecimento do estranho num determinado contexto. Ao carácter de testemunho da fotografia susceptÍvel de enquadramento nos diversos sistemas simbólicos da estética à história, sobrepõe-se a contingência de uma particularidade, inominável, que resiste à própria interpretação.
O estranho que Freud analisou em Das Unheimliche, provém de uma dimensão traumática com compulsão à repetição e que não é simbolizável. Não se trata aqui da sua vertente trágica como no Homem da Areia de Hoffmann, ou mesmo inquietante como em muitos outros trabalhos da artista. A sua estranheza pode ser, como acontece com a nossa observação de situações afins nos muitos filmes de Mélies, do domínio puramente
humorístico e sobretudo irracional. O contínuo jogo com os tÍtulos que estas imagens travam apenas reforça este aspecto.
O seu humor define o encontro com um real não simbolizável. Conjuga em si paroxisticamente a ordem do puramente acidental com a noção de causa determinada, que seria ela própria inerente à ordem da fotografia enquanto manifestação testemunnhal do real. Acidente e acaso integram assim um universo bem mais alargado das formas da causalidade. Acaso e determinação convivem no aparecimento dos fragmentos que se associam e rompem com a ordem naturalista das imagens. São aqueles a metonomia de um universo ausente que subitamente e pelo aparecimento de um fragmento se torna familiarmente próximo do enunciado. Neste sentido, fantasmático é não só o fragmento que aparece, como também todo o contexto assim se torna, por via de uma cumplicidade que não se revela mas adivinha. O aparecer destes fragmentos, pelo facto de conjugarem uma ordem aleatória e causal, inscreve uma espectacularidade que se não confina à transcendência do puro e simples irrompimento do imaginário, mas é simultaneamente a do seu duplo e da sua ameaça interpelante. Dizia Jean-Luc Godard que "não se pode explicar de outra maneira que o cinema sendo herdeiro da fotografia, tenha tentado ser sempre mais real do que a vida. É por aí que ele volta a ser espectáculo". Que sob o ponto de vista formal estes fragmentos de imagens que aparecem sejam contíguos ou afins do respectivo cenário pouco importa, já que eles se inscrevem por via de uma dimensão desejante e como princípio de sabotagem do real. Não são o punctum de que fala Roland Barthes e que transporta a morte e a desrealização através de um mecanismo de compulsão à repetição, capaz de reactivar um fantasma do inconsciente recalcado e que vem radicalmente pôr em questão toda a ordem, mas aproximam-se do 'acaso objectivo' dos surrealistas. O aparecer é aqui o de outro sentido que é enunciado num plano de superfície e montado pelo cenário. Ele é a projecção do desejo num objecto ou imagem estranhamente reveladores de algo que ultrapassa o decifrável, para além da vontade da artista ou de qualquer leitura. Daí que o pastiche ou semelhança assumidos com qualquer estética simbolizante sejam puramente paródicos e o fundo destas declaradamente afecto a uma ordem desejante e irracional. A revelação deste excesso configura a analogia e a realidade poética como a ordem e desordem destas fotomontagens.  O desejo  enquanto substância torna-se  o produtor  do real e da própria linguagem. As pretensas alegorias insinuadas, bem como a parafernália da retórica neoclássica da imagem, assumem-se risíveis nesta situação.
Neste sentido, a tradição de Méliès, que se opunha ao documentarismo dos Lumière, é reposicionada criticamente num outro contexto histórico, em que de novo o documentarismo se afirma como prática apropriada pelas artes plásticas. Que daí seja recalcada ou sossobre, de modo algo puritano, matéria-prima desejante, tal nos parece querer mostrar o conjunto destes trabalhos.

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